segunda-feira, 2 de abril de 2018

Si Vis Pacem, Para Bellum


por Davi M. Simões

As civilizações pagãs eram civilizações guerreiras par excellence e eram todas organizadas em castas. O sistema de castas era hereditário e seus integrantes só podiam casar com indivíduos do mesmo grupo. Entre os arianos a casta mais prestigiada era a dos chátrias, os guerreiros, a que melhor expressava o sentimento ancestral de rebelião e revolta contra a Criação, comportamento característico de nossa condição decaída, já que Lúcifer foi o primeiro revolucionário. Esses homens eram seres inescrupulosos e quase bestiais, homens-animais sedentos por sangue, famintos por ódio e motivados pela vingança. Na guerra evocavam animais de poder e atacavam com um furor não encontrado nem no mais selvagem predador de rapina. Os povos arianos surgiram no Vale do Indo (hoje Paquistão e norte da Índia) e se espalharam por todo o Hemisfério Norte, do Cáucaso à Grécia, do Norte da África ao Extremo Ocidente, originando os vikings, espartanos, romanos, celtas, lusitanos etc. A religiosidade desses povos estava sob a influência dos anjos caídos, chamados por eles de “deuses”, e a moral, bem como a caridade, eram desconhecidas, até o começo da Cristandade.

Ainda antes do processo civilizatório e moralizante Romano-Cristão, para o observador mais atento, a guerra e a religião andavam juntas, amalgamadas. O que o cristianismo trouxe de novo foi que pela primeira vez, desde a Batalha da Ponte Mílvia, os guerreiros eram também religiosos, pois todo cristão é chamado à santidade, e para seguir Jesus Cristo é necessário preservar valores morais e preceitos que até então eram praticados exclusivamente por sacerdotes. O guerreiro cristão é também um religioso, une em si mesmo as duas castas superiores: chátria e brâmane. Assim foi o grande arquétipo da cavalaria cristã São Jorge da Capadócia (mais ou menos 300 d.C.), um capitão da cavalaria romana que, ao ver a perseguição perpetrada pelo imperador Diocleciano contra os devotos de Nosso Senhor, fez questão de afirmar publicamente sua fé e, mesmo baixo insuportáveis torturas, após resistir à inúmeros tormentos como o sal em suas feridas, até ser morto decapitado, não hesitou em declarar reiteradas vezes: “todos os deuses dos pagãos são demônios!”

Personificando guerra e religião, os templários elevaram esse caráter dúplice à máxima potência, adotando uma regra como fazem as ordens religiosas, cumprindo os votos de obediência, pobreza e castidade, e cultivando o heroísmo tão característico dos primeiros mártires, sendo admirados e temidos pelos inimigos. São Bernardo de Claraval presta seu famoso “elogio da nova milícia dos templários”: 

“Este é um gênero de milícia não conhecido nos séculos passados, no qual se dão ao mesmo tempo dois combates com um valor invencível: contra a carne e o sangue e contra os espíritos de malícia espalhados pelos ares. Em verdade, acho que não é maravilhoso nem raro resistir generosamente a um inimigo corporal somente com as forças do corpo. Tampouco é coisa muito extraordinária, se bem que seja louvável, fazer guerra aos vícios ou aos demônios com a virtude do espírito, pois se vê todo o mundo cheio de monges que estão continuamente neste exercício. Mas quem não se pasmará por uma coisa tão admirável e tão pouco usada como é ver a um e outro homem poderosamente armado dessas duas espadas, e nobremente revestido do caráter militar?

Seu espírito se acha armado do elmo da fé, da mesma forma que seu corpo da couraça de ferro. Estando fortalecido por essas duas espécies de armas, não teme nem aos homens nem aos demônios. E digo mais: não teme a morte, posto que deseja morrer. Com efeito, o que pode fazer temer, seja a morte ou a vida, quem encontra sua vida em Jesus Cristo e sua recompensa na morte? É certo que ele combate com confiança e com ardor por Jesus Cristo, entretanto deseja mais morrer e estar com Jesus Cristo, porque este é seu fim supremo.

Oh! Com quanta glória voltam do combate esses vencedores! Oh! Com quanta ventura morrem esses mártires na peleja! Regozija-te, campeão valoroso, de viver no Senhor, mas regozija-te ainda mais de morrer e ser unido ao Senhor. Sem dúvida tua vida é frutuosa e tua vitória gloriosa, mas tua morte sagrada deve ser preferida com justa razão a uma e a outra. Pois se os que morrem no Senhor são bem-aventurados, quanto mais não o serão aqueles que morrem pelo Senhor. Em verdade, de qualquer maneira que se morra, seja no leito, seja na guerra, a morte dos santos será sempre preciosa diante de Deus. Mas a que ocorre na guerra é tanto mais preciosa, tanto maior é a glória que a acompanha.

Os soldados de Cristo poderão, com absoluta segurança de consciência, pelejar as batalhas do Senhor, sem receio de cometer pecado com a morte do inimigo, nem desconfiança de sua salvação se sucumbirem. Porque dar ou receber a morte por Cristo não só não implica ofensa a Deus, nem espécie alguma de culpa, mas pelo contrário merece muita glória.

Quando tira a vida a um malfeitor, não deve ser chamado homicida, porem "malicida", se é que assim me posso expressar; pois ele executa literalmente as vinganças de Cristo contra os que praticam a iniquidade, e adquire com razão o título de defensor dos cristãos. E se é morto, não dizemos que se perdeu, mas que se salvou. A morte que ele dá é para a glória de Cristo; e a que recebe é para sua própria glória.

Saia pois de sua bainha a dupla espada espiritual e material dos cristãos, e seja descarregada com força sobre a cerviz dos inimigos para destruir assim tudo quanto se ergue contra a ciência de Deus, isto é, a fé dos seguidores de Cristo, para que não digam jamais esses infiéis: ‘Onde está o seu Deus?’”

Para ilustrar o destemor dos templários, vale um breve relato de Cláudio de Cicco sobre os monges guerreiros (*):

“Um templário é preso pelos turcos, que o amarram a uma cruz e o colocam sobre a muralha da cidade, para evitar o ataque dos outros cavaleiros templários. Mas, ao chegarem estes, o próprio prisioneiro insistiu em que deviam atacar a cidade mesmo ao preço de sua vida. E, realmente, os turcos ficaram muito espantados quando viram que os cavaleiros se organizaram e marcharam em direção à cidade, imediatamente matando o cavaleiro com uma lança (com isso se completou o simbolismo da cruz e da lança).” 

Por intermédio de seu Filho unigênito, o Nosso Deus criou uma religião que ama a guerra, e não há nada com maior caráter civilizacional do que quando religião e guerra se complementam. Todas as grandes civilizações antigas, mesmo praticando os erros tão peculiares dos pagãos como sacrifícios humanos, suicídios, incestos, orgias, infanticídios etc. tinham na guerra e nos seus “deuses” a receita da continuidade de sua tradição e o motivo da expansão de seu espaço vital. Nesta alta-modernidade que, segundo Anthony Giddens, “é uma ordem pós-tradicional, que, longe de romper com os parâmetros da modernidade propriamente dita, radicaliza ou acentua as suas características fundamentais”, o homem emasculado pós-cristão e neo-pagão não ousa nem ao menos esboçar uma reação violenta de autodefesa, quando mais de ataque. Ele não medita sobre a morte, nem sobre “o sentimento trágico da vida” (Miguel de Unamuno)“Ensinam os autores espirituais que, quando meditamos sobre a morte é para vivermos bem. A ciência pode tornar mais agradável a vida, pode contribuir para prolongá-la. Mas há valores que estão acima da própria vida. E mais vale morrer salvando esses valores do que viver indignamente” (José Pedro Galvão de Sousa). Nunca o ser humano esteve tão desprovido de sentido e de causa, tão vazio de sacralidade e de ritos verdadeiramente transcendentes. O que resta é um arremedo de tradição degenerado em costumes que são seguidos de forma mecânica, involuntária, com o único objetivo, sutil e tenuemente, de se manter uma certa coesão e ordem social, ao contrário viveríamos em um puteiro a céu aberto, pior que Sodoma e Gomorra.

Ernst Jünger, filósofo e combatente, um amante declarado das trincheiras, que via a guerra como uma experiência interior, disse que o mundo moderno com o tecnicismo e o automatismo degradou tudo, inclusive a guerra. Citemos como exemplo a extinção dos samurais, que se deu graças ao uso da pólvora levada pelos missionários portugueses, tornando seu estilo de vida anacrônico, algo que já havia se passado na Europa com as ordens de cavalaria. Da pólvora, pondo fim ao confronto físico, iniciando a batalha à distância, avançamos com uma velocidade aterradora aos transportes a vapor, depois aos submarinos, aos fuzis, até a revolução química, reduzindo a guerra à um empreendimento de covardes, nerds operadores de video games. Jünger entendia a guerra como “o mais forte encontro dos povos”, que o combate entre adversários era “coisa sempre de santos”, chegando a afirmar que “viver é matar”. Escreveu em diários seus relatos dos campos de batalha de 1914 e, em sua exaltação quase libidinosa da violência, clamava que o abalo aos fundamentos da civilização, sendo um deles a guerra, “desencadeia bruscas erupções de sensualidade”. Certamente, além da influência dos escritos de Léon Bloy, foi essa aguçada percepção da grandeza da guerra que o converteu ao catolicismo no fim da vida.

Toda a história da humanidade é a espera pelo Redentor. A espera se inicia logo após a Queda e se concretiza graças aos bons judeus que, desde Abraão, passando por Moisés, pelos Reis Davi e Salomão, o profeta Elias e os guerreiros Macabeus resistindo à helenização, pavimentaram o caminho ao Deus Senhor dos Exércitos em meio ao paganismo amoral, imoral, idólatra e divinizador do homem, de seus vizinhos.

Ó doce e feliz culpa, que sem a qual não conheceríamos Cristo Jesus, nem por meio d’Ele, com nosso esforço ascético pessoal, habitaríamos a Morada Celeste, onde só entram os violentos!

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(*) A Igreja Católica, as Ordens de Cavalaria e os Templários, por Cláudio de Cicco: https://www.4shared.com/office/rJAMv395ei/Os_Templrios_-_Cludio_de_Cicco.html

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