sexta-feira, 11 de maio de 2018

Pequena Regra de Vida

Galahad e o Graal, por Edwin Austin Abbey.

“Que não reine em ti, nem nos sentidos, nem na vontade, nem no afeto, desejo pelas coisas terrenas.” (São Boaventura)

por Davi M. Simões

Esta regra foi escrita para mim mesmo e para todo aquele que quiser tirar proveito. Encontrando-me no estágio inicial da vida mística, conhecendo todos os meus vícios e limitações, sistematizei alguns ensinamentos mais que básicos para seguir adiante no combate espiritual. Quem inicia nessa via percebe muitos obstáculos a transpor e não demora a entender que não há volta. Tudo muda: visão de mundo, forma de se portar e as relações interpessoais. A sensibilidade aumenta e o gosto se refina. Mas assim como podemos ser maus e virarmos bons, o oposto também acontece, e quanto mais alto subimos, maior e mais rápida a queda. A verdade é que quem um dia foi águia, não quer ser pomba, e a águia precisa frequentemente caçar e rapinar.

“Quanto mais subia

ofuscava-se-me a vista,

e quão maior a conquista

mais escuro se fazia;

mas sendo do amor a lei,

dei um cego e obscuro salto,

e fui tão alto, tão alto,

que minha caça alcancei.”

(São João da Cruz)

Nos adiantados o gozo e a alegria da oração desaparecem, e não é raro serem atacados por tentações e doenças espirituais gravíssimas (como o escrúpulo, por exemplo). Mas eles sabem que é a alma sendo forjada pelo Pai, como o ferreiro forja a espada ao fogo. Assim sendo, rezemos não para nos sentirmos felizes, mas para perseverarmos em busca da coroa que ganharemos nos Céus. 

Os modernos nunca entenderão o que faz alguém se anular, se destruir, se aniquilar e enlouquecer por amor ao Cristo. Nunca conceberão por que alguém ama mais a Deus – para eles um conceito abstrato, um mito opressivo que nos enche de culpa – do que todos aqueles que ele vê e toca, mesmo sendo o parceiro ou o familiar. Aos virtuosos, todos os que combatem e vencem, não há nada mais prazeroso do que subjugar a carne em função do Espírito. Com efeito, neste breve e humilde artigo, o mais importante não pode ser descrito, está subentendido aos poucos que experimentam a verdadeira felicidade na guerra sem tréguas contra a carne, o mundo e o demônio. 

“A felicidade não é justamente aquilo que todos querem, não havendo ninguém que não a queira? Onde a conheceram para assim a desejarem? Onde a viram para amá-la tanto? Que a possuímos, é certo, mas não sei de que maneira. Há um modo de possuí-la que nos torna felizes, e há os que são felizes pela esperança de possuí-la. (...) Há uma alegria que não é concedida aos ímpios, mas àqueles que Te servem por puro amor; essa alegria és Tu mesmo, e esta é a felicidade: alegrar-nos em Ti, de Ti e por Ti. É esta a felicidade, e não outra. Quem acredita que exista outra felicidade, persegue uma alegria que não é verdadeira.” (Santo Agostinho). 

Começa a regra: 

Observar os Dez Mandamentos é pré-condição para quem deseja ser cristão. Eles são a base do bom convício social e os fundamentos da nossa civilização. Quem viola qualquer dessas leis fica em pecado mortal, devendo repará-lo imediatamente pela confissão contrita. Temer e tremer diante da ameaça do tormento eterno é o princípio da Sabedoria. “Ai daqueles que morrerem em pecado mortal!” (São Francisco). 

Na lei mosaica o Homem é afastado do mal e induzido ao bem pelo temor, mas a perfeição só é alcançada com a prática do Sermão da Montanha, a lei do amor, que nos une a Cristo Jesus nos dando forças para entregarmos nossa vontade a Deus, mesmo sob perseguição e ameaça de morte. Deus acolhe todos aqueles que o amam, se arrependem e se penitenciam pedindo perdão ao sacerdote com a determinação de não pecarem mais, se possível chorando os males cometidos. 

Antes da mística devemos passar por um processo de purificação, que se chama ascese. O meio é a radical aniquilação de si mesmo, para o fim último que é a divinização (ou deificação, para os orientais). Além de observar os Dez Mandamentos e praticar o Sermão da Montanha, há 12 requisitos que precisam ser virilmente perseguidos se quisermos alcançar a união com o Uno: 

1 – O Credo Apostólico nos dá o conhecimento do que devemos crer; 

2 – Frequentar os sete sacramentos da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana na sua forma tradicional. Confessar e comungar sempre que possível. Analisar nossas faltas ao fim do dia antes de deitar, já que não há garantia de amanhecermos com vida. “Vigiai, pois não sabeis o dianem a hora.” (Mt 25,13); 

3 – Não dormir muito: o sono nos faz perder tempo e o descanso excessivo deixa a alma satisfeita. Desconfie daquele que prega o bem-estar e a satisfação em vez do sacrifício e da violência contra si mesmo. “O sofrimento é o paraíso na terra.” (São Francisco de Assis).

4 – Mortificar a visão: evitar a vã curiosidade, nos afastando dos escândalos e burburinhos do mundo. Olhar e assistir somente ao que for edificante"Não se deseja o que não se vê” (São Francisco de Sales). Contemplar a beleza da natureza criada e da Arte Sacra, que é inspirada pelo Espírito Santo. É belo e bom tudo o que se aproxima da Verdade, e, ao contrário do que dizem os modernos, que todos os caminhos estão certos, nós afirmamos que todos os caminhos estão errados, exceto um. Só reconhece a feiura e a maldade, quem, com um mínimo de senso estético, de proporção e simetria, sabe o que é belo e bom. O monstruoso e o disforme causam repulsa ao homem virtuoso. Também é mister rejeitar literatura proibida, principalmente esotérica e filosofia judaica e alemã. Os melhores livros serão sempre a Bíblia Sagrada (principalmente os Livros Sapienciais, os Evangelhos de São Mateus e São João e as Epístolas de São Paulo), o Imitação de Cristo, o Catecismo de São Pio X e a regra e os escritos do santo de devoção;

5 – Mortificar o tato: ele está atrelado diretamente à potência sexual. Evitar a sensualidade agindo com modéstia e discrição, sem querer ser desejado. O uso do cilício ajuda a nos disciplinar. Como cavaleiros de Cristo entendemos que o corpo é o cavalo e a alma é o cavaleiro; dominemos, pois, a besta com rédea curta. “O Espírito do senhor quer que a carne seja mortificada e desprezada, vil e abjeta.” “E tenhamos ódio aos nosso corpo com seus vícios e pecados” (São Francisco de Assis); 

6 – Mortificar o paladar: enquanto alguns passam fome, outros preferem comer até vomitar. Não comer até a saciedade e se envergonhar caso assim proceder. O alimento existe para nutrir o corpo e não devemos ser glutões como os animais. A alimentação duas vezes ao dia é mais que suficiente, evitando o excesso de carne vermelha e doces, embora nunca recusando o que nos for servido. O jejum purifica o corpo, limpa a mente e agrada a Deus, e pode ser feito às quartas e sextas. Também controlar a língua, pois a boca fala do que o coração está cheio. “Os murmuradores e detratores são odiosos para Deus” (São Francisco de Assis). “Palavra ociosa é a proferida sem necessidade pra quem fala e sem utilidade pra quem ouve”. “De ter falado muitas vezes me arrependi, de ter calado, nunca.” “Tardança em falar, prontidão em obedecer” (São Boaventura). Ser alegre e bem-humorado (mesmo nas adversidades) não significa rir e fazer rir a todo tempo, como os jovens, as mulheres vulgares e os palhaços;

7 - Mortificar o olfato: não querer sempre sentir cheiros agradáveis ou se banhar de perfume como fazem as prostitutas. Renuncia a todos os vãos perfumes, sejam quais forem; suporta, antes, de boa vontade, o mau cheiro que reina em geral nos quartos dos doentes. Imita o exemplo dos Santos que, animados pelo espírito de caridade e mortificação, sentiam tanto gosto no ar corrompido das enfermarias, como se estivessem em jardins de flores odoríferas” (Santo Afonso Maria de Ligório);

8 – Mortificar a audição: o silêncio é a mais perfeita música. Não sendo possível o silêncio absoluto, preferir os sons baixos e agradáveis como o canto dos pássaros e dos grilos na natureza. Não consumir música pagã nem de origem africana, por serem excessivamente tribais e sensuais. Evitar músicas agitadas, principalmente à noite. Deus não mora onde há agitação; 

9 – Regrar as paixões e controlar os vícios capitais: as paixões, assim como o prazer, não são condenáveis, desde que em concordância com o uso da razão e que convenham à natureza. “Ninguém pode viver sem algum prazer sensível e corporal, porém nas coisas morais há um prazer que é bom, pelo fato de que o apetite superior ou inferior repousa no que convém à razão” (Santo Tomás). Nossas paixões devem ser ordenadas pela prudência; por exemplo a raiva, que ninguém negaria ser lícito usá-la para confrontar uma injustiça – vide Nosso Senhor chicoteando os vendilhões do templo. Sendo as paixões muito fortes, podem inclusive obscurecer ou obstaculizar o livre arbítrio da vontade. Mas as paixões não são, em si mesmas, algo bom ou mal, mas naturais, pois são disposições que devem favorecer a inclinação do homem, por seus atos, ao bem de sua natureza e ao fim último a que se inclina, mediante os bens particulares que se lhe disponham a vida” (Santo Tomás). Sobre os vícios capitais (chamam-se capitais porque são como que a cabeça, a fonte de todos os pecados), devemos contrapô-los com as virtudes contrárias: a castidade (pureza) contra a luxúria, a caridade (generosidade) contra a avareza, a temperança (moderação) contra a gula, a diligência (persistência) contra a preguiça, a paciência (serenidade) contra a ira, a bondade (compaixão) contra a inveja e a humildade (modéstia) contra a vaidade. 

10 – Direcionar o intelecto ao Primeiro Princípio, que é o Sumo Bem e a Suma Beleza: o estudo da física, da metafísica e da teologia pode ser feito, desde que não nos esqueçamos do reto agir, fazendo tudo pela glória de Deus. E não nos ensoberbeçamos com o conhecimento adquirido, pois Lúcifer, por ter sido um anjo, sabe mais das coisas de Deus do que nós. Sejamos católicos vivendo e falando catolicamente, sem querer usar palavras difíceis, pois Deus mostra às pessoas sem instrução aquilo que esconde dos sábios e instruídos. A inteligência e a beleza são presentes de Deus; nossos são somente o pecado, a ignorância e tudo quanto é mau e defeituoso. “Não é suficiente a ciência sem a caridade, nem a inteligência sem a humildade” (São Boaventura); 

11 – Dedicar a Deus a própria vontade: submeter-se a Deus, ao próximo e aos inferiores, desde que não cause danos à alma. Saber ouvir e obedecer ao confessor e ao diretor espiritual. Praticar heroicamente as virtudes da bondade, humildade, mansidão e caridade, sem esquecer de antes ser justo e equânime. “São amigos os que injustamente nos causam tribulações e angústias, vergonhas e injúrias, dores e tormentos, martírio e morte, aos quais devemos amar muito, porque temos a vida eterna por aquilo que nos causam” (São Francisco de Assis); 

12 – Ser manso: “é quase impossível praticar a mansidão sem a humildade. (...) Para ser manso é preciso um certo domínio de si mesmo que previne e modera os movimentos da cólera; suportar os defeitos do próximo, que exige paciência; e o perdão das injúrias e a benevolência para com todos, até para com os inimigos. (...) A mansidão pratica-se para com o próximo, mas também para conosco, bem como para com os seres animados e inanimados. (...) A máxima utilidade da mansidão é fazer reinar a paz na alma, paz com Deus, com o próximo e conosco: com Deus, porque nos faz aceitar os acontecimentos com paz e serenidade; com o próximo, porque nos faz suportar seus defeitos; para conosco, quando cometemos uma falta e não nos impacientamos nem irritamos” (Adolphe Tanquerey).

Que em nossas orações e Terços diários meditemos atentamente a Paixão de Nosso Senhor: a perseguição, as cusparadas, os açoites, os sofrimentos d’Ele e de Sua mãe, e Sua morte gloriosa, que teve como objetivo nos livrar de nossos pecados.

Sobre tal acontecimento trata sublimemente Santo Afonso Maria de Ligório: “a história narra-nos um caso de um amor tão prodigioso que será a admiração de todos os séculos. Havia um rei, senhor de muitos reinos, que tinha um único filho, tão belo, tão santo, tão amável, que, sendo o encanto do seu pai, este o amava como a si mesmo. Ora, este príncipe se afeiçoou grandemente a um escravo e tendo este cometido um delito, pelo qual fora condenado à morte, o príncipe se ofereceu a morrer por ele. O pai, amante apaixonado da justiça, resolveu condenar seu amado filho à morte, para livrar o escravo do castigo merecido. E assim aconteceu: o filho morreu justiçado e o escravo ficou livre. Este caso, que uma só vez se deu e nunca mais se repetirá no mundo, está consignado nos santos evangelhos, onde se lê que o Filho de Deus, o Senhor do universo, vendo o homem condenado à morte eterna por causa do pecado, quis tomar a natureza humana e pagar com sua morte a pena devida pelo homem. ‘Foi oferecido porque ele mesmo o quis’ (Is 53,7). E o Eterno Pai o fez morrer na cruz para nos salvar a nós, míseros pecadores. ‘Não poupou a seu próprio Filho, mas o entregou por nós todos’ (Rm 8,32).

A soberba foi a causa do pecado de Adão e, por conseguinte, a ruína do gênero humano; por isso veio Jesus Cristo e quis reparar esse desastre com sua humildade, não desdenhando abraçar a confusão de todos os opróbrios que lhe prepararam seus inimigos, como já predissera Davi: ‘Porque por vossa causa suportei o opróbrio e a vergonha cobriu a minha face’ (Sl 68,8). A vida inteira de vosso Redentor foi cheia de confusão e desprezos que recebeu dos homens, e ele não recusou suportá-los até à morte, a fim de nos livrar da confusão eterna: ‘Tendo-lhe sido oferecido o gozo, sofreu a cruz, desprezando a ignomínia.’ (Hb 12,2).”

A recompensa para quem perseverar até o fim contra a carne, o demônio e este mundo fétido e miserável, será ser cidadão do Reino dos Céus. Para isto tenhamos Cristo como arquétipo, que foi o homem mais perfeito a andar sobre a terra, e lembremos que Ele estará conosco até o fim dos tempos.

Amém!