por Davi M. Simões
Mesmo compreendendo que raramente um judeu (principalmente se for
alemão) escreve algo que preste (exceção feita talvez a Edith Stein e Max
Scheler), me lancei ao estudo da “psicologia individual” de Alfred Adler. Com
ele aprendi que todos os problemas nascem das relações interpessoais, então
fugir para um eremitério seria correr do problema, em vez de enfrentá-lo. Para
deixar de ver o próximo (infelizmente cada vez menos próximo, provavelmente
alguém que se identifique com um símio) como inimigo ou competidor, como uma
ameaça que desperta repugnância no trato (“alguém que pertence”, como
disse León Bloy, “a uma multidão de mortos que parecem estar vivos, e tem
apenas uma caricatura de existência”) é preciso, primeiramente, possuir um
forte sentido de comunidade. Então o outro passa a ser um amigo, um companheiro,
também parte da engrenagem que é a sociedade, e cabe a mim, mesmo sem fazer
expectativa alguma de reciprocidade, me portar de forma afetuosa,
desinteressada e cordial (no sentido buarqueano). Julgamos as pessoas pelo
padrão que temos em mente, e às vezes a ótica com que encaramos a vida nos faz
ter pensamentos automáticos distorcidos.
É necessário ter bem enraizado – o que até o momento ainda exige de mim
esforço – que todos possuímos dentro de nós a Santíssima Trindade, como disse o
santo barroco João da Cruz: “grande consolação traz à alma o entender
que jamais lhe falta Deus, mesmo quando se achasse (ela) em pecado mortal;
quanto mais estará presente naquela que se acha em estado de graça! Que mais
queres, ó alma, e que mais buscas fora de ti, se tens dentro de ti tuas
riquezas, teus deleites, tua satisfação, tua fartura e teu reino, que é o teu
Amado a quem procuras e desejas? Goza-te e alegra-te em teu interior
recolhimento com ele, pois o tens tão próximo. (...) No entanto, dizes: se está
em mim aquele a quem minha alma ama, como não o acho nem o sinto? A causa é
estar ele escondido, e não te esconderes também para achá-lo e senti-lo. Quando
alguém quer achar um objeto escondido, há de penetrar ocultamente até o fundo
do esconderijo onde ele está; e quando o encontra, fica também escondido com o
objeto oculto.”
Que belo chamado à contemplação e ao amor! Todo louco por Cristo deve
venerar e servir aos Homens, sendo o último dos últimos, se deleitando na
introspecção, porém também cuidando do próximo, não só dos familiares e dos
patrícios, mas se compadecendo de cada pessoa que está adormecida para essa
realidade que é ter a Trindade Santa dentro de si: eis a verdadeira dignidade
humana que fundamentou toda a obra caritativa da Igreja. Não devemos nos
irritar com as faltas alheias, e amar ao próximo verdadeiramente é instigá-lo a
abandonar o pecado: faz isso o contemplativo ao rezar pela humanidade, e faz
isso o missionário ao batizar o selvagem, arrancando-o das garras do demônio.
A primeira grande comunidade da qual pertencemos é a pátria, terra de
nossos pais, e defendê-la até a morte é estar de acordo com o quarto
mandamento. Disse Plínio Salgado que “ser brasileiro não é difícil, é só ser
o que somos, e não o que os estrangeiros querem que sejamos”. Mas ele
ignorava que o nacionalismo, para ser coerente, precisa ser católico e
monárquico. Compreender o Brasil passa por estudar a religião do nosso povo, a
instituição que o formou, sua arte culta e seu folclore (cultura popular).
O Brasil é um amálgama de raças. Mas antes já o era Portugal: Porto
Gales, Portus Cales, Por Tu Graal. Um povo que, como ensinou
Gilberto Freye, “foi o colonizador europeu que melhor confraternizou
com as raças chamadas inferiores. O menos cruel na relação com os escravos.” O
seu ódio não era racial, o fato das navegações serem simplesmente a continuação
do movimento de expansão iniciado pela Reconquista, fez com que sua luta fosse
contra o infiel e o herege. À primeira Missa da Terra de Santa Cruz, juntamente
ao ingênuo e deslumbrado bugre, assistiram tipos raciais distintos como
cristãos-novos, descendentes de ciganos, de mouros e de todos os povos
provenientes do Minho ao Algarve e além. Homens heroicos (os que não ficaram
caranguejando pelo litoral, claro) que, após cruzamento com nativos, dão
início, com as batalhas do Guararapes (que afinal de contas possuíram caráter
religioso) e posteriormente com a Guerra do Paraguai, à unidade racial e
territorial que hoje nos orgulhamos. Ah a guerra, sempre a guerra, mãe dos
homens fortes e fundadora de civilizações!
O Brasil nasceu em Ourique. As Cinco Quinas representam o Cruzeiro do
Sul. E não é possível compreender nossa Civilização Luso-tropical fora do
conceito de hispanidade em sua bicontinentalidade (indecisão entra Europa e
África), a importância do Império, a arte barroca e o folclore de matriz
medieval com seus tipos guerreiros (homens da Caatinga, caipiras e gaúchos),
trovadores, cavalhadas e fogaréus. Quem não sabe disso, por mais que tenha lido
todo o pensamento social brasileiro, não conhece nosso país. No Brasil a raça é
o que menos importa.
Há ciência no âmbito das humanidades? Pode-se estudar seres humanos como
peixes no aquário? É possível usar o método indutivo e epistemológico na
História? Ela é cíclica, linear ou pontilhada? Sei apenas que, quando se trata
dos maiores acontecimentos da humanidade, há mais contadores de história que
“cientistas”. A hipótese da “evolução” humana (baseada mais em crenças
metafísicas e ilógicas, que propriamente científicas), a Inquisição, a Lenda
Negra, A Revolução Francesa, o “Holocau$to” etc. tudo foi escrito
majoritariamente por pessoas comprometidas com uma visão de mundo
judaico-maçônica e/ou marxista. Não acredito na História, e toda vez que leio
Platão parece que escuto Léon Bloy sussurrar ao meu pé do ouvido: “a
filosofia é o que há de mais inútil no mundo.” A linguagem
pretensamente científica acadêmica é deselegante e carece de estilo, a forma
ensaística lhe é infinitamente superior. Exemplos: um único livro de
literatura, que foi o “memórias do subsolo” de Dostoiévski, influenciou
grandemente o pensamento de Nietzsche, e a poesia de Ilíada e Odisseia os primeiros
filósofos. Dom Quixote ensina mais sobre a Espanha que qualquer “cientista
social” contaminado pelo liberalismo. E Machado de Assis não foi antes maior
historiador e filósofo que romancista, contista e poeta? (*)
Além do catolicismo, da monarquia, do barroco e das tradições de origem
medieval vinculamo-nos aos outros povos de mesma origem pelo idioma. Falo,
penso e sonho em inglês, é minha segunda língua, mas só sei expressar meus
sentimentos mais profundos e religiosos na língua pátria, a última Flor do
Lácio. Nada sobra no português, mas há palavras que faltam na língua bárbara. E
a ausência da palavra no vocabulário representa a ausência do sentimento no
espírito. Que poeta consegue ser gongorista em línguas não civilizadas? Minha
pátria é a latinidade, geradora da hispanidade, pois só é possível filosofar
catolicamente em latim.
Ninguém descreveu melhor o Brasil que Gilberto Freyre. Sua obra,
inclusive, foi lida no Estado Novo salazarista para legitimar a manutenção das
colônias portuguesas e por hispanistas de todo o mundo. É preciso visitá-lo e
revisitá-lo: “casa grande & senzala”, “o brasileiro entre os outros
hispanos”, “novo mundo nos trópicos”, “o mundo que o português criou” etc.
Então, para finalizar, fica aqui minha homenagem ao maior sociólogo brasileiro,
na pena de Nelson Rodrigues, para o Globo em 28/03/1970:
“Vejamos: outro dia, Gilberto Freyre completou setenta anos. Eu me
lembrei de Hugo, Victor Hugo. No seu septuagésimo aniversário, a França parou.
Toda Paris desfilou diante do poeta. Rosas, dálias, lírios, as flores mais
inimagináveis foram atiradas a seus pés. Naturalmente que a maioria dos
manifestantes eram os idiotas, não socializados, não organizados. Mas vejam o
abismo que se cavou entre as duas épocas. Hoje, os idiotas, instalados em sua
onipotência numérica, não concederiam ao grande homem um vago e reles bom-dia.
E assim Gilberto Freyre fez setenta anos debaixo de um silêncio brutal.
Tive o cuidado de ler os jornais. Não vi uma linha. Minto. Vi num dos nossos
jornais uma nota, espremida num canto de página. Quem a redigiu teve vergonha
de elogiar um dos homens mais inteligentes do Brasil, em todos os tempos. Eis o
que eu queria dizer: está em seríssima crise vital o país que não reconhece
seus maiores homens.
Um companheiro ia passando e eu o chamei: “Olha aqui o que merece
Gilberto Freyre.” O companheiro passou a vista e rosna este comentário; —“Por
essas e outras é que o Amazonas tem menos população do que Madureira.”
Não é a primeira vez, nem será a última, em que falo de Gilberto Freyre
e do seu exílio. Em nosso tempo, o Brasil tem sido o exílio do extraordinário
artista. Os jornais não falam no seu nome, e vale a pena explicar, para os
menos informados, esse mistério. A festiva infiltrou-se em toda a imprensa brasileira.
Outro dia, passei num velho órgão. Enquanto esperava um colega, vi uma
estagiária, dos seus 18, 19 anos, de sandália e calcanhar sujo. Estava lendo e
titulando telegramas. Súbito, pega um dos telegramas, amassa-o e o atira na
cesta. Diz para os lados: Gilberto Freyre não é autor que se cite.”
Aí está, num simples gesto e numa simples frase, a Operação Cesta. Os
membros da festiva fazem uma vigilância feroz. Qualquer notícia que não
convenha à esquerda vai para a cesta, sumariamente. Para o leitor, que nada
sabe dos bastidores jornalísticos, pode parecer inverossímil o poder de uma
estagiária de calcanhar sujo. Inverossimilhança nenhuma. Reparem como o
editorial é uma coisa e o resto do jornal outra. A direção opina no editorial.
O resto do jornal fica por conta da infiltração comunista.
No caso de Gilberto Freyre, as esquerdas têm-lhe ódio. Portanto, não se
pinga uma palavra sobre a sua obra gigantesca. Falei no seu exílio na própria
terra. E realmente ele é muito mais notícia lá fora. Escolham qualquer país
europeu. Na Itália, França, Inglaterra, Alemanha, sua presença intelectual é
muito mais poderosa do que aqui. Sim, o estrangeiro é muito mais sua casa do
que o Brasil.
Isso só acontece num país que perdeu a sua consciência crítica. Bem sei
que a “rebelião dos idiotas” é um fenômeno universal. Mas na Europa, nos
Estados Unidos, todas reconhecem a dimensão mundial de sua figura. Ao saudá-lo,
a Universidade de Sussex proclama que, depois de sua obra, o “Brasil tornou-se
mais brasileiro”. Ao passo que, em nossa terra, as meninas de calcanhar sujo e
os barbudos da festiva querem liquidá-lo pelo silêncio.
Tudo porque, na sua formidável solidão, não transige com as esquerdas.
E, ao mesmo tempo, quantas mediocridades têm uma delirante cobertura promocional.
Mas vejam: nos seus setenta anos, Gilberto Freyre fez uma obra para sempre.
Daqui a cinco anos, os idiotas que hoje o negam ou, pior, que fingem
esquecê-lo, vão desaparecer como se jamais tivessem existido. Daqui a duzentos
anos, Gilberto Freyre estará cada vez mais vivo; e sua figura terá a tensão, a
densidade, a atualidade da presença física.
Na minha juventude, os literatos patrícios perguntavam uns aos outros:
—“Quando sai tua Guerra e paz?” E todos respondiam: “Estou caprichando.” Mas a
Guerra e paz não saía. Eu só imaginava o escândalo que seria se, um dia,
explodisse, no Brasil, uma súbita Guerra e paz. Até que, há pouco, fui ler todo
o Gilberto Freyre. Li e reli. Fiz a enorme descoberta. Sua obra tem o
movimento, a profundidade, a variedade do romance tolstoiano.”
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(*) A pequenez mental do “erudito” de carreira faz com que ele ache que só
é válido o que é produzido dentro da instituição acadêmica, onde ela cita
apenas a si própria (autorreflexão ou dogmatismo?) e qualquer dissidente é
desencorajado a continuar, pois nem orientação consegue. A academia não
produzirá conteúdo contra si mesma. Se todos adaptassem seus escritos às regras
da ABNT, os discursos verdadeiramente eruditos se empobreceriam e enfeiariam. O
tempo passa e Platão se revira no túmulo (?), cada vez mais teses e artigos tem
se apresentado ilegíveis! Alguém aí estaria disposto a apostar que há progresso
de fato trazido pelo tão sonhado “estado positivo” comteano?