segunda-feira, 11 de maio de 2020

O Ser e Deus

Visão Beatífica, por Gustave Doré.

“Dizei-me: de que pode falar um homem decente, com o máximo prazer?

Resposta: de si mesmo.” (Fiódor Dostoiévski)

por Davi M. Simões

A metafísica é o ramo da filosofia que estuda o Ser enquanto ele mesmo. Se tudo fosse imanência, a física seria a ciência mais excelente, mas como há transcendência, precisamos pensar metafisicamente. Dizer platonicamente que “a alma é uma esfera”, pode ser uma heresia para os aristotélico-tomistas, mas é a direção que trilhamos.

O Ser do Homem:

Somos maus e desprezíveis. Buscar no Homem seu Ser verdadeiro é entendê-lo como contingente. O ser humano é um ente fraco que nasce nu e desprotegido, durante a vida carrega dentro de si uma bolsa de excremento, faz questão de cultivar uma alma embaciada pelo apetite desordenado da própria excelência, e é incapaz de praticar o bem se não estiver na Graça. A soberba é um pecado supracapital, ou seja, é a cabeça (caput) de todos os outros pecados e o resquício daquele Non Serviam que obrigou o mais belo Serafim a deixar seu trono, que é ocupado hoje por São Francisco de Assis.

A autoexaltação é a semente de todos os vícios e nos assemelha aos demônios. Qualquer virtude perde seu mérito se não for fundamentada na humildade (a virtude mais falada e menos praticada), porque somente ela pode restaurar nosso estado antes da Queda. O humilde olha sempre para sua condição terrena (humus), pois mesmo possuindo sangue real desde a preexistência de sua alma (e a Santíssima Trindade em seu coração), estima a si mesmo no seu justo valor e esconde de todos seus bons atos (caso de fato os pratique), já que é impossível viver sem pecado por esforço próprio.

O humilde é aquele que (1) nada tem: é pobre de bens e de espírito, e com as esmolas lava a alma dos pecados; (2) nada quer: possui confiança na providência, tendo em vista que tudo o que necessita foi Ele quem nos regalou, como o ar, a luz e o pão; e (3) nada sabe: em silêncio e na quietude nunca quer que sua opinião prevaleça, estar sempre certo é sinal de apego a si mesmo.

O Homem humilde é um suicida, pela obediência se aniquila, como que morto para o mundo, para viver somente para Deus, não fugindo dos sofrimentos, e até os deseja dedicando-os às almas no purgatório.

O Ser de Deus:

Mas quem é Deus? Em Êxodo 3,13-14, “Moisés perguntou: ‘Quando eu chegar diante dos israelitas e lhes disser: O Deus dos seus antepassados me enviou a vocês, e eles me perguntarem: Qual é o nome dele? Que lhes direi?’ Disse Deus a Moisés: ‘Eu Sou o que Sou. É isto que você dirá aos israelitas: Eu Sou me enviou a vocês’.”

O Ser criado está sempre sujeito à tensão ser/não ser, temporalidade/atemporalidade, finitude/eternidade. O Ser não criado só pode ser apreendido no âmbito da fé. Como disse Edith Stein: “A ação de Deus não tem nem princípio nem fim; subsiste desde a eternidade, até a eternidade, repousa na imutabilidade mesma de seu ser: é ato puro. Não tem necessidade de nenhuma faculdade passiva que exija ser posta em movimento.” É Ele mesmo quem (juntamente aos seus anjos) tudo move. E também: “Deus é o ser que abarca e contém tudo e que enquanto tal é o único distinto de todo ser finito.”

Para o místico, se compreender o Ser é associá-lo à existência, então Deus está acima do Ser, pois não se assemelha a nenhum tipo de imagem. Deus mora nas trevas, escondido por uma escura nuvem do não-saber. Na mística mais especulativa, se diz que tudo é, exceto Deus, ou seja, Deus não existe, porque é o único “algo” não-criado. “Deus, o Eterno, o Incriado e o Infinito, não cria nada absolutamente semelhante a si mesmo, pois não há um segundo Eterno, Incriado e Infinito.” (Edith Stein).

Deus não é isto ou aquilo, mas somente Deus é Deus. É na vacuidade que Ele trabalha, no desprendimento de toda imagem exterior, para que Ele e a alma se tornem espelho um do outro.

Pode-se chegar até Deus positivamente através das criaturas, todas elas saíram de seu intelecto; ou negativamente, entendendo aquilo que Ele não é. Qualquer tentativa de descrevê-lo é debilidade e loucura, o mais adequado é silenciar.