domingo, 24 de março de 2019

A Estética da Morte


“Vem depressa doce morte

Acolhe-me em teu socorro

Que morro porque não morro.”

(Santa Teresa D’Ávila)


por Davi M. Simões

Tudo o que é criado possui peso, número e medida. A criação é lógica e assim deve ser o que for objetivamente belo. A beleza, a bondade e a verdade (presentes na Santíssima Trindade – transcendente, eterna e imutável) são captadas pelas potências superiores, que são a vontade e o intelecto, e também pelos sentidos. A vontade capta a bondade e o intelecto capta a verdade, ademais não se pode amar o que não se conhece, e conhecer a verdade sem amá-la, pelo menos não ordenadamente, é o que leva ao pecado. “Essa profunda relação entre verdade, bem e beleza faz com que chamemos de belas as ações que são moralmente boas. Também, por isso, as mães, ao repreenderem os filhos, lhes dizem para não praticarem ações más, porque elas são feias. Por sua vez, toda ação virtuosa é racional, e, quando alguém age mal, diz que errou, isto é, que agiu contra a razão. Por fim, quando a verdade aparece com todo o seu esplendor, dizemos que ela é bela: ‘Eis aí uma bela verdade’. Toda beleza é boa e verdadeira. Em contra-partida, tudo o que é mau é feio e falso. Tudo o que é falso é mau e feio. E o feio lembra o mal e o erro.” (Orlando Fedeli). Igualmente por meio da sensibilidade nos deleitamos no prazer do que é belo e sublime, seja criado por Deus ou pelo Homem: é o que chamamos estética. Uma obra de arte deve mimetizar a realidade e não distorcê-la, como é a práxis dos modernos (abstracionismo, dadaísmo, surrealismo e tutti quanti), que intentam expressar intuitivamente novas formas além das já conhecidas, transmutando o “espírito da matéria”, criando uma outra realidade suprassensível e misteriosa, eco dos anseios gnósticos e herméticos do romantismo.

Não há nada mais belo e intrigante que a morte, e precisamos cultivar o hábito de meditar sobre o fato de que sempre morreremos mais cedo do que planejamos. No cristianismo primitivo, na arte das paredes das catacumbas, a caveira era frequentemente retratada, não somente significando o fim da existência, mas o começo da vida verdadeira, com a morte para o mundo. Etimologicamente o lugar da crucifixão de Nosso Senhor, o Gólgota, significa “lugar da caveira” que, segundo a tradição, teria sido a sepultura de Adão, lavada pelo sangue do Redentor (o “segundo Adão”), “de modo que, como todos morrem em Adão, todos possam ressurgir em Cristo.” (Orígenes). Nas obras de Hieronymous Bosch, no século XV, o além-vida é excepcionalmente representado na forma de inferno, como o desígnio certo da maioria dos homens, dos que vivem a falsa e perecível vida dos prazeres. Era intencionalmente a arte do feio, do disforme e do grotesco, como só pode ser um lugar onde não impera a proporção e a harmonia, semelhante ao infernal mundo moderno, caricatura de tudo o que é diabólico. Após as três revoluções na arte (renascimento, romantismo e arte moderna), o que hodiernamente vigora é “a imaginação no poder”, quer dizer, não havendo mais regras de beleza, nem verdade objetiva, bom é tudo aquilo que eu imagino ser útil e proveitoso e todas a opiniões são corretas, ainda que contraditórias.

Conhece-se uma pessoa a partir da relação que ela tem com a morte. Todos sairemos do corpo, indubitavelmente. Mas quando? Como nos encontrará a doce morte? Cheios de luxos materiais, que não levaremos conosco, ou cultivando riquezas imorredouras como virtudes, sabedoria e, o mais importante, amor ao Cristo Salvador? Em poucas gerações estaremos olvidados, não seremos nem mesmo uma pálida lembrança. Cabe-nos então a morte em vida para este pântano malcheiroso que é o mundo e suas modas. “Muito louvável é aquele que todos os dias espera a morte; mas é santo aquele que todas as horas a deseja. (...) Muito bem disse um sábio que não se pode viver um dia bem vivido senão pensando que é o último.” (São João Clímaco). Mas que Deus nos encontre vigilantes: “Fiquem preparados para tudo: estejam com a roupa bem presa com o cinto e conservem as lâmpadas acesas. Sejam como os empregados que esperam pelo patrão, que vai voltar da festa de casamento. Logo que ele bater na porta, os empregados vão abrir. Felizes aqueles empregados que o patrão encontra acordados e preparados! (...) O empregado que sabe qual é a vontade do patrão, mas não se prepara e não faz o que ele quer, será castigado com muitas chicotadas.” (Lucas 12, 35-48). No entanto, quando uma alma é esposa de Nosso Senhor e Nele pensa com mórbida obsessão, e com confiança descansa em seus braços como a criança descansa nos braços do pai, ela nada teme, pois o telos da vida é a morte.

A morte física é consequência do pecado original, que passa a ser o destino do homem graças a enganação da antiga serpente, levando à Queda o primeiro casal (“O salário do pecado é a morte.” Romanos 6,26). Nada obstante, sem a morte a vida não estaria completa e não haveria o glorioso arrebatamento no fim dos tempos. O que mostra que Deus tira o bem do que aos ímpios parece mal. Jesus Cristo transfigura esse mal em benção, morrendo fisicamente submisso à vontade do Pai e ressuscitando. Para o cristão a vida não é tirada, mas transformada (“Para mim, a vida é Cristo, e morrer é lucro.” Filipenses 1,21).

A estética é o ramo da filosofia que tem por objeto o estudo da beleza. E dentre as investigações filosóficas, o tema da morte é o que mais fascina e espanta. O espanto é a origem do pensar e para filosofar é pré-condição possuir tal sentimento. “A filosofia não tem outra origem (que o espantar-se) (...) Aquele que se maravilha sente que é ignorante; portanto, se foi para escapar da ignorância que estudou filosofia, é evidente que buscou essa ciência por amor ao conhecimento (Platão). Tenhamos todos, pois, frieza e indiferença estóica perante a morte, como teve Sêneca, que apontou as seguintes atitudes como configurando desperdício de vida: “Insaciável ganância, trabalhos supérfluos, a embriaguez, a gula, a inércia, a preocupação com a opinião alheia, a busca da adulação de superiores, a inveja pelo destino alheio, a falta de objetivos, a falta de rumo na vida, os bens (riquezas), preocupação com a eloquência, a necessidade de mostrar talento, a libertinagem, paixões ávidas, conversas inúteis, a glória, a avareza, a raiva, além de outros.” Conforme o filósofo espanhol, “aquele que não quer morrerrecusou viver! A vida na verdade nos foi dada tendo a morte por condição: é na sua direção que andamos. Que loucura temê-la!”. Se há beleza na morte, é porque ela, o grande enigma do gênero humano, assim como deve ser a arte, é a janela para o Infinito.

quinta-feira, 14 de março de 2019

Pela Preservação do Estilo Hispânico


por Davi M. Simões

Como bem ensinou Manuel Garcia Morente: “la hispanidad es um estilo”. Ele diz ser um estilo que denota elegância, grandeza e indiferença perante a morte, que não seria o termo, o pôr do sol, mas a aurora, o começo da vida eterna. Porém é mais fácil dizer o que a hispanidade não é: não é raça, língua ou território. E não é europeia nem moderna. 

A hispanidade é (e nisso estão todos os hispanistas de acordo) o resultado da Civilização Romana que atinge o seu esplendor na Reconquista. E, segundo Morente, a figura que melhor representa esse “estilo” é o cavaleiro cristão: “los siglos de Reconquista han impregnado de religiosidad hasta el tuétano el alma del caballero cristiano; infundiéndole, además, la convicción de que la vida es, en efecto, lucha; la lucha por imponer a la realidad circundante una forma buena, una manera de ser excelente, que por sí misma la realidad no tendría. El caballero cristiano es, pues, esencialmente un paladín defensor de una causa, deshacedor de entuertos e injusticias, que va por el mundo sometiendo toda realidade – cosas y personas – al imperativo de unos valores supremos, absolutos, incondicionales.” 

Constitui a Hispania a síntese de várias civilizações e, por sua geografia privilegiada (bicontinentalidade) e tradição pré-moderna, se aproxima mais da África de Tertuliano e Santo Agostinho, que da Europa da “Paz de Vestfália”. 

Hispania protagonizou o acontecimento na história que teve par somente com a chegada do Homem à lua: a travessia dos oceanos para a conquista de novas terras, formando o maior império já visto, expandido pelas lanças dos “terços”, o exército mais temido da época. 

A hispanidade em sua forma mais pura, sem os estrangeirismos liberais ou socialistas, que nos legaram os caudilhos e as revoltas indigenistas, é a expressão máxima da Contra-revolução e dissente do nacionalismo, geralmente sintoma de um naturalismo infantil (enaltecedor das forças naturais como o território e a raça). 

A Civilização Luso-tropical participa da hispanidade, e, como nação monárquica, é nossa a missão de liderar a América do Sul contra o jugo de culturas alógenas que tentam nos impor sua influência e inculcar seus valores degenerados, como sistematicamente faz a América do Norte, nascida sob a égide do protestantismo mais judaizante.

A fundação da Terra de Santa Cruz é luminosamente representada na pintura “a primeira missa” de Victor Meirelles e alguns dos nossos tipos nacionais bem retratados nos quadros de Almeida Júnior, Raimundo Cela e Vasco Machado. Mas ao procurar um símbolo que resuma a Hispano-américa, a imagem que logo vem à mente é a de uma obra de arte oriunda da eternidade: Nossa Senhora de Guadalupe, a Virgem de feições mestiças, que com suas vestes indígenas converteu massivamente a população nativa. Eis aí a hispanidade: um estilo de vida que se enquadra e se amolda onde for preciso a Fé ser manifestada, sem limites territoriais, assimilando raças e culturas.

terça-feira, 5 de março de 2019

Admoestações ao Cavaleiro do Graal


“Sede vós perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos Céus.” (Mateus 5,48) 

por Davi M. Simões

Bem-aventurados aqueles que desprezam, porque permanecerão sãos de corpo e de Espírito.

Bem-aventurados aqueles que correm aos desertos, porque não serão importunados pela turba.

Fuja, ó Homem superior, fuja para as cavernas, e que não seja ao progresso vossas odes!

Somente tu estás vivo entre um sem-número de mortos-vagantes. Solitariamente caminhas por esta terra desolada, sem pecúnia nem alforje.

Querias levar Jesus a todos as almas, mas calaste. Calaste pois só encontras ouvidos moucos e corações endurecidos pelo amor-próprio.

És rei, monge e guerreiro em uma única criatura. Leão, cordeiro e águia como uma Quimera que, sob o estandarte desfraldado da cruz rubra sobre fundo níveo, como o escudo de Galahad, ataca sem piedade vossos inimigos, os inimigos do Princípio Primordial.

E que Ele vos perdoe, pois são poucos neste mundo sublunar os quais as mãos nunca pecaram contra a pureza. Ó mãos abençoadas, mais de deuses que de homens!

Desconfie de toda e qualquer crença que não pregue o sacrifício e o sofrimento. Desconfie de todos aqueles que pregam a paz não como um meio para se alcançar a ordem, mas como o fim último. Desconfie daqueles que creem absolutos certos valores generalistas e sentimentais. 

Ó Homem superior, somente tu percebes o quão venenosa e viciosa é a virtude do “amor” proclamada e pregada pelos porcos, cães e moscas que vos rodeiam... 

Ó Homem superior, somente tu entendes que a humanidade falhou, e só retomará sua missão quando vencer a si mesma e se divinizar... 

Aniquila-te agora, ó Homem, se por acaso almejas seres ainda um homem! 

Que a guerra e a Religião sejam vossa obsessão. Que os ícones e as iluminuras sejam vosso deleite.

Pela arte e arquitetura tu contemplas a baixeza a que desceu o homem-símio moderno. São as línguas e os corações duplos que comandam o mundo, já que a retidão dos valores transcendentes e a “inutilidade” das coisas belas sempre espantarão o homem inferior.

Parece que somente tu, ó Homem, em um raio de muitos quilômetros, possuis outros interesses mais altos, mais nobres que somente copular com o maior número possível de fêmeas, mesmo elas vos idolatrando e tentando esfregar em vossa cara suas genitálias.

Expurgue de ti todo pecado que clame aos céus por vingança, é melhor morrer que pecar mortalmente, que teres vossa alma desfigurada e lançada ao inferno.

Violência direcionada, agressão calculada e ódio santo contra todos aqueles que obstinadamente denigrem vossa fé.

Homem superior, fazes desta terra o vosso céu, onde o prazer em pelejar nunca abranda em vosso coração e a lembrança do Crucificado nunca se dissipa em vossa mente.

Mas ó distinto cavaleiro, nunca deixes de defender os pobres, os fracos e teres piedade dos doentes. Afinal, o que são esses simulacros de homens, senão enfermos de corpo e de espírito?