sábado, 29 de fevereiro de 2020

Oração Diante do Crucifixo (Para a Sexta-feira Santa)


por Davi M. Simões

Eis-me aqui, diante de ti agonizante, ao lado do teu casto discípulo amado e de tua mãe. Confesso, antes de tudo, minha pobreza, pois nada quero, nada sei e nada tenho.

Obrigado por tudo, porque do nada que tenho, tenho mais do que quero, do que preciso e do que mereço. Obrigado por teres me dado a vida, para gozar da existência; uma segunda chance, para conhecer a Verdade; e também pelos anjos encarnados que colocaste em minha senda.

És o Caminho, a Verdade e a Vida; ninguém vai ao Pai, senão por ti (João 14,6). Foste o homem mais perfeito que habitou a terra; perfeitíssimo Homem e perfeitíssimo Deus. E quem não está contigo, está contra ti (Mateus 12,30).

É pouco o que te peço, “pois não faço o bem que quero, mas o mal que não quero” (Rom 7,15-20), apenas que me inspires a ser cada vez mais violento e intolerante, como exiges de teus servos.

Senhor,

Quem é como tu, ó fonte primeva? Homem algum é digno de mencionar-te!

Quero amar-te como me amas, ó ser eterno e imutável! O Ser por excelência; de resto, tudo mais é contingente.

Para conhecer-te é preciso ter fé, e para ter fé, é necessário querer. Que minha faculdade volitiva esteja em sintonia com teus anseios.

Por ti, Divindade oculta, desejo aniquilar-me até à loucura. Não desperdiçarei meu amor, nem meu ódio, com nada que não seja útil à salvação.

Aumenta minhas virtudes, como o amor ao silêncio, a castidade dos meus membros e o tão difícil e custoso sorriso que desarma os desafetos.

Prometo castigar meu corpo, para o qual é doce praticar o pecado. Que minha vista, minha audição, meu tato, meu gosto, meu olfato sejam mortificados. A maior virtude é dar tudo a Jesus e nada a criatura alguma.

Todo meu esforço está no não-saber, praticando a douta ignorância, visando a mais alta união da mente com o Amado Pai. Procuro o esquecimento e o desapego de todo ente criado, sem deixar de admirar teus vestígios na natureza.

Quero louvar-te em meus atos, palavras e escritos. Que minha mente e coração almejem unicamente aquele conhecimento escondido em tuas trevas.

Imploro, ó Doçura da minha alma, que me mostres como alcançar a união santificante, onde a imaginação sossega, a memória esquece, a vontade ama, o intelecto desconhece.

Antes da união mística, subindo aos poucos os degraus da Escada de Jacó, devo desconfiar da imaginação, que é sempre atacada por memórias e imagens, mesmo as mais deleitosas, como as de anjos nos Céus.

Vire, Senhor dos senhores, para mim tua face, dando-me a paz, onde eu possa suspirar por tua bondade. A paz de uma alma em êxtase que, após se recolher ao alto do monte, tenta experimentar teus mistérios que estão além de toda imagem.

A boda com a Santíssima Trindade (acima, fora e dentro de mim) é a meta a alcançar com impetuosidade através de uma ascensão erótica contigo, que é o Noivo da minha alma.

A introspecção é a fonte mais nobre de conhecimento da Verdade, pois é quando o sujeito se confunde com o objeto. E compete ao contemplativo achar o fundo da alma (grund der seele, segundo Mestre Eckhart), onde se esconde a Trindade.

Minha delícia é carregar tua cruz, mas caio sempre, porém como tu mesmo, Senhor, na Via Crucis, não deixo de levantar-me, e confesso a ti minhas fraquezas, como miserável descendente da raça de Adão, neste mundo que me causa náuseas.

Perdão por diariamente ofender a ti e tua mãe. Mãe de misericórdia, sem mácula já na preexistência de sua alma. Ela que é vida e esperança nossa nos derradeiros instantes.

Bebo teu sangue, como tua carne, beijo tuas feridas, mesmo me achando indigno e abjeto.

Sei que nestes tempos findos, quase não há sacerdotes piedosos, e receber a benção de um herege é uma maldição. Ensinaste a Francisco de Assis e Rulman Merswin que os leigos salvarão tua Igreja de teus ministros corrompidos (“cloacas de impureza”, disse tua mãe em La Salette).

Quando voltares serão os teus sacerdotes e purpurados os mais duramente castigados. Ó, Justiça suprema, que momento terrível para aqueles que não se arrependerem!

Confio que em dois dias ressuscitarás e voltarás ao Pai em carne e osso, e muito em breve serei chamado para perto de ti, depois de pregar e sofrer como Paulo, e contemplar teus mistérios como João, para desfrutar da Visão Beatífica. Pois esta vida é célere e a terra comparada ao universo é um grão de milho. Ora, perder a alma por um grão de milho é a maior de todas as estultices, por isto, enquanto aqui embaixo, prefiro o combate à morte eterna, nem que eu sofra o martírio de Estevão.

Aprendi com Leonardo de Porto Maurício, que pequeno é o número daqueles que se salvam. Nem aos Papas há garantia de vida eterna, e quantos no inferno não blasfemam contra ti, por acharem ter levado uma existência santa. O destino da minha alma somente tu o sabes, Senhor, mas que eu, iluminado pelo Pai Seráfico, persevere até o fim.

Livrai-me, enfim, dos meus inimigos (a carne, o mundo e o demônio), lavai-me com teu sangue, e que eu seja, já deificado, o espelho de tua luz não criada. Pois se me deste inteligência, foi para servir exclusivamente a ti.

Amém!