sexta-feira, 9 de novembro de 2018

Breves Considerações Sobre Personalidade e Modernismo

Arte moderna muito profunda para ser compreendida.

  

por Davi M. Simões 

Permitindo-me discordar dos grandes gênios do mal Marx e Engels, quando afirmavam que “a história da humanidade é a história da luta de classes”, eu defendo que a história da humanidade é a eterna e perene luta entre as forças luciferianas da revolução contra as da manutenção da Ordem. Quando me dizem que os novos tempos não podem ser detidos e que a revolução é imparável, eu me questiono se é realmente inevitável que a forma de pensar que acompanha a modernidade respingue em mim. Me pergunto se não é lícito resistir empunhando como maior bandeira o que é mais valoroso em cada um de nós: a nossa personalidade. Quando abrimos mão dela para nos enquadrar, reduzimos o sofrimento, que é o pavor do burguês (como estado de espírito, não como classe social) e das religiões orientais, como a budista. Para reconhecer a espiritualidade legítima é preciso aquilatar o quanto ela nos faz sofrer, pois a vida cômoda e pacífica é própria dos covardes de nossos tempos. Guerrear, resistir, nos afastar dos profanos e censurar o que consumimos gera sofrimento. Alguns santos hoje cultuados em nossos altares foram espancados pelo demônio e/ou foram chagados, e devemos viver inspirados neles, porque graças às sucessivas revoluções industriais levamos uma vida mais confortável que a dos reis de outrora.

A nossa dignidade se encontra na personalidade. Como disse Max Stirner, a palavra “eu” só pode ser dita por cada indivíduo sobre si mesmo, nunca para se referir a outrem. O “eu”, do ponto de vista psicológico, é a consciência de nossa própria identidade. “Eu” e pessoa constituem a nossa subjetividade, e a personalidade, que é dotada de vontade livre e responsabilidade, enquanto valor absoluto, se situa na terceira via entre a individualidade atomista stirneriana e lockeana, e a coletividade totalitária esmagadora da pessoa. Para Aristóteles a injustiça consiste nos extremos, o justo está no meio termo. Ele escreveu que “a justiça é a forma perfeita de excelência moral porque ela é a prática efetiva da excelência moral perfeita. Ela é perfeita porque as pessoas que possuem o sentimento de justiça podem praticá-la não somente a si mesmas como também em relação ao próximo”. Essa alteridade é intrínseca ao personalismo. Pessoas e famílias devem ser os fundamentos do estado, não o individualismo egoísta ou o coletivismo igualitário. 

O conservador conserva o individualismo revolucionário, e o reacionário reage como forma de escapismo da realidade, que ele considera um inferno. Mas somente o tradicionalista pode, olhando para o passado, restituir o que é bom, belo e verdadeiro pautado pela Lei Natural. O tradicionalista é personalista, portanto, está entre o regresso e o progresso. Ele entende o que é inegociável e combate a modernidade sem transigir. E somente ele pôde fundar, como foi a Idade Média, mil anos de progresso de fato: espiritual, portanto filosófico e artístico. Regressistas e conservadores são revolucionários, já que ambos incluem em suas cosmovisões resquícios de ideias modernas.

A modernidade se inicia com o voluntarismo e o nominalismo no seio da própria Igreja, como os embriões do que seria a pseudo-reforma protestante. O fundador da modernidade foi Lutero, mas inspirado nos erros teológicos de escolásticos antitomistas. Daí para a liberdade religiosa pregando a separação entre Igreja e estado, e para a Revolução Francesa com o soberanismo e nacionalismo, foi um pulo. O final do medievo marca o início da modernidade e os erros filosóficos foram se proliferando como epidemias após cada uma das três maiores revoluções: protestante, francesa e russa. Os danos causados por elas podem ser facilmente percebidos por qualquer um que honestamente estude a história da arte. Essas três revoluções destruidoras da sociedade medieval causaram, segundo Orlando Fedeli, três revoluções na filosofia (cartesianismo, idealismo alemão e marxismo ou materialismo histórico), três revoluções na arte (renascimento, romantismo e arte moderna) e três revoluções na economia (mercantilismo, capitalismo e socialismo ou comunismo). A total confusão mental em que nos encontramos é fruto do rompimento radical com a física e a metafísica aristotélicas e o Direito Natural Integral.

É contra as duas maiores enfermidades desta modernidade despersonalizante, individualismo e coletivismo, que devemos afirmar a metafísica e a ética da pessoa. A persona - um ator representando diante de si mesmo, da natureza e dos outros - como um ser que tem obrigações e discrimina o que é direito de privilégio.

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Anarco-Monarquismo: Que Bicho é Esse?


“Nenhuma classe social explorou mais descaradamente as outras que a que hoje chama a si mesma ‘Estado’”.

“A anarquia que ameaça uma sociedade que se envilece não é seu castigo, senão seu remédio”.

(Nicolás Gómez Dávila)

 

por Davi M. Simões

O anarco-monarquismo é um ideal que compartilha com o mutualismo, o distributismo e o ordoliberalismo (economia social de mercado) o espectro terceiro-posicionista. O próprio termo demarca seu caráter transversal e antinômico, já que anarquia significa ausência de governo (não necessariamente ausência de ordem), e monarquia governo de um só. Uma das suas principais características é o corte anti-democrático, fazendo eco ao que cria Pierre-Joseph Proudhon ao afirmar que “a democracia é o ideal do estado projetado ao infinito”, e que “(a democracia) é muito mais custosa que a monarquia e incompatível com a liberdade”. Ele, que foi o primeiro anarquista (cunhando o nome, inclusive), também disse que “a democracia é uma aristocracia de mediocridades, (...) não é mais que a tirania das maiorias, a tirania mais execrável de todas, porque não se baseia nem na autoridade de uma religião, nem na nobreza da raça, nem em prerrogativas do talento da propriedade. Seu fundamento é o número, e sua máscara é o nome do povo”.

Na monarquia libertária o poder temporal se submeteria ao poder espiritual, sem ruptura entre o trono e o altar. O poder espiritual emana de Deus, através do Cristo Rei e sua Esposa, a Santa Madre Igreja, encabeçada pelo Papa, que é infalível ex cathedra. Quanto ao poder temporal, o estado, como instituição parasitária que é, seria meramente simbólico, onde o rei encarnaria o representante tribal hereditário do regime mais antigo, saudável e natural que há. Segundo a cosmovisão libertária defendida por Hans-Hermann Hoppe, “estados não produzem nada para ser vendido no mercado, e, como tal, suas receitas não advêm da venda voluntária de bens e serviços. Ao contrário: estados vivem da coleta de impostos, que são pagamentos coercivos coletados sob ameaça de violência”. Hoppe defende a superioridade da monarquia sobre a democracia alegando que “enquanto o monopólio estiver nas mãos de uma única pessoa, como o príncipe ou o rei, e principalmente quando ele for um monopólio hereditário, então será do interesse do monopolista – porque ele possui o monopólio e o seu valor capitalizado – preservar o valor de sua propriedade. (...) Com a substituição por um parlamento e presidentes eleitos no lugar de um príncipe ou rei não eleitos, a proteção permanece um monopólio do mesmo modo que era antes, o que ocorre é apenas isso: o monopólio territorial de proteção agora se torna propriedade pública ao invés de privada. Ao invés de um príncipe que o considera sua propriedade privada, um zelador temporário e efêmero é colocado no comando do esquema mafioso de extorsão. (...) Príncipes e reis eram soberanos diletantes, e normalmente eram dotados de uma boa dose da educação proveniente de uma criação de elite natural e do sistema de valores que a acompanha, de modo que frequentemente acabavam agindo simplesmente apenas como um bom pai de família agiria. Por outro lado, políticos democráticos são e só podem ser demagogos profissionais, constantemente apelando mesmo para os mais básicos instintos – tipicamente igualitários – à medida que cada voto é obviamente tão bom quanto qualquer outro.”

A Igreja não possui um ideal político-econômico fixo, estático, mas pela sua Doutrina Social, escrita por Leão XIII na Carta Encíclica Nerum Novarum, conseguimos extrair diretrizes para implantarmos um sistema mais justo e condizente com a razão e o Direito Natural. A diversidade de culturas neste universo sublunar nos obriga a pelejar pelo regime mais em sintonia com a tradição de nosso povo hispânico. Como diria Alberto Buela: “o mundo não é um universo, mas sim um pluriverso onde convivem várias ecúmenes culturais”. Destarte, acrescento que não nos importa as nações heréticas, neo-pagãs e infiéis, cremos que todas elas deveriam se submeter ao Reinado Social de Nosso Senhor Jesus Cristo, ou serem conquistadas.

As ideias-força da Doutrina Social da Igreja são a prevalência da família sobre o estado, o estado subsidiário (que entre unicamente quando falte a inciativa privada), a defesa da inviolabilidade da propriedade privada (inclusive do direito de herança), assim como a cooperação das classes pela paz social, formando corporações mútuas de patrões e empregados, onde estes não lesem aqueles, e aqueles respeitem a dignidade destes, pois “a concórdia traz consigo ordem e beleza; ao contrário, dum conflito perpétuo só podem resultar confusão e lutas selvagens”. (Leão XIII).

Dois famosos anarco-monarquistas foram J.R.R. Tolkien e Salvador Dalí. Em uma carta ao filho, Tolkien afirma: “minhas opiniões políticas tendem cada vez mais para a anarquia (filosoficamente compreendida como significando a abolição do controle, não homens barbados com bombas) - ou para a monarquia “inconstitucional”. Eu prenderia qualquer um que use a palavra estado (em qualquer outro sentido que não o do reino inanimado da Inglaterra e seus habitantes, uma coisa que não tem poder, direitos nem uma mente); e (...) executaria todos se permanecessem obstinados! (...) E o trabalho mais impróprio a qualquer homem, mesmo os santos (os quais, de qualquer maneira, ao menos relutavam em realizá-lo), é mandar em outros homens. Nem mesmo um homem em um milhão é adequado para tal, e menos ainda aqueles que buscam a oportunidade. E pelo menos isso é feito apenas a um pequeno grupo de homens que sabem quem é seu mestre”.

O anarco-monarquismo autêntico, dada a ausência de centralização, predominou no medievo feudal, encabeçado pela aristocracia, que, longe de ser uma classe ociosa e burguesa, formava uma elite guerreira e destemida. Ser nobre é ser virtuoso, é ser rei que governa a si mesmo, doma a natureza com o ímpeto do caráter, sabendo dizer “não” quando necessário. Ser nobre é ser vencedor dos inimigos e de si próprio. É ser contra torrentem!

O termo “anarquia” é maldito nos orbes católicos, mas é preciso dizer que tal ideal atraiu muitos fiéis convictos; poderíamos citar dentre eles os dois que considero mais proeminentes: Guido Fawkes e Dorothy Day. Fawkes nasceu em 13 de abril de 1570 em York, na Inglaterra, lutou na “Guerra dos Oitenta Anos” na Espanha contra os protestantes holandeses e tramou, juntamente com outros companheiros, a “Conspiração da Pólvora” na tentativa de assassinar o rei protestante inglês Jaime I explodindo o parlamento, plano que foi descoberto antes de se concretizar. Sua figura foi perpetuada na cultura pop pelo quadrinho “V de Vingança” e a máscara com seu rosto se tornou símbolo assíduo em manifestações libertárias. Já Day era americana do Brooklyn, Nova York, e nasceu em 8 de novembro de 1897, foi uma jornalista e ativista social, fundando, juntamente com Peter Maurin, o Catholic Worker Movement. Em seus periódicos advogou fortemente o distributismo de G.K. Chesterton e Hilaire Belloc, e, ao contrário do Fawkes, suas ações eram pacifistas.

Igualmente ao monge e ao frade, os anarquistas católicos simpatizam com a pobreza e rejeitam qualquer hierarquia. Eles alegam que São Francisco de Assis foi um exemplo de desobediência às regras do mundo, pelo repúdio ao dinheiro e objeção de pertencer a qualquer tipo de autoridade, não quis ser sacerdote, nem mesmo ministro geral da própria ordem que fundou, estando sempre submetido a alguém. Poderíamos dizer que a principal característica de toda tendência ácrata é a desconfiança do poder estabelecido e da lei. A lei não baseada no Direito Natural Integral pode muito bem ser injusta e imoral, como, seja dito, sói ocorrer. É obrigação de todo homem justo desobedecer a qualquer imposição que ameace a saúde da alma, “pois o direito natural é universal, o fogo que queima em todas as partes” (Aristóteles), expresso ou tácito, independente de raça ou cultura. A Lei Natural, que está antes e acima da lei positiva, “são os mandamentos divinos impressos no coração do homem” (São Paulo).

O anarquismo foi um idealismo anti-ideológico, uma ordem sem governo, uma rebeldia anti-burguesa e anti-comunista que se deixou ser integralmente assimilado pelo jacobinismo mais utópico, invertendo a pirâmide hierárquica que colocava no topo o homem livre senhor de si, para anulá-lo na massificação dos homens vulgares. O aristocratismo e o “apoio mútuo” autogestionário proudhonianos se deixaram submergir sob os excrementos da “igualdade” e da “liberdade” falaciosas aguçadoras dos impulsos mais animalizantes. Lamentável!

sábado, 23 de junho de 2018

Crítica Jusnaturalista ao Estado Laico


por Davi M. Simões

O estado brasileiro é laico, mas não é ateu, nem agnóstico. Nosso tipo de estado adota oficialmente uma posição neutra e imparcial no campo religioso, não apoiando, nem discriminando quaisquer crenças religiosas ou convicções filosóficas ou políticas (“salvo se alguém as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei. – Art.  5°. VIII CF/88). Diferentemente da nossa constituição imperial de 1824 (diga-se de passagem, a melhor e mais duradoura), que determinava o catolicismo como religião oficial, a "constituição cidadã” de 1988 não é confessional. Segundo dados do IBGE de 2013, o Brasil é a maior nação católica, com 127 milhões de fiéis, o que equivale a 65% da população do país e aproximadamente 12% dos católicos do mundo. Para o nosso “guardião da constituição”, o Supremo Tribunal Federal, a simbologia cristã utilizada em locais e órgãos públicos (inclusive o crucifixo dentro da própria Suprema Corte) possui um caráter exclusivamente cultural, assemelhando-se a um mero adereço decorativo, como um quadro ou escultura. 

Um estado confessional é aquele que privilegia uma determinada religião. Existe influência nas decisões do Estado, mas o poder secular predomina. Por sua vez nas teocracias, as decisões políticas e jurídicas passam pelas regras da religião oficial adotada, como na Arábia Saudita, no Irã e no Vaticano. Em alguns casos, as decisões dos governantes e juízes são controladas pelo clero. 

O estado laico é criação revolucionária, tendo origem na Revolução Francesa, e em nome da mesma se matou “dez vezes mais gente em um ano do que a Inquisição Espanhola em quatro séculos” (Olavo de Carvalho). Tal evento foi uma revolta de homens vulgares e sanguinários, comandada pela burguesia nacionalista com o intuito de destruir a forma de governo mais natural e perfeita, a monarquia, que, como dito por Santo Tomás, mesmo degenerada, é o melhor dos regimes. O principal pilar da ideia de estado laico é o igualitarismo. Ora, se não há na natureza uma só folha igual a outra, muito menos há igualdade absoluta entre os homens, com toda sua complexidade e personalidade única inerente a cada exemplar. Não é objeto deste breve ensaio fazer uma abordagem ontológica do Ser, apenas lembrar o quanto a natureza é hierarquizada e, acima de tudo, mantida e ordenada por um Hierarca Supremo. Tudo ao nosso redor demonstra isto, a criação nada mais é que uma casa de espelhos que reflete um Criador sábio e lógico, distinto do próprio mundo. Não há nada criado que não estivera antes no Seu intelecto, seja mineral, vegetal, animal, homem ou anjo. 

O absolutismo monárquico (como o de Luis XIV) nunca foi apoiado pela Igreja, que se unia ao estado com o objetivo de promover anseios verticais e transcendentes. Pode-se empregar a analogia de que a Igreja seria o sol e o estado a lua, ou a analogia dos círculos concêntricos, pois ambas as instituições deveriam andar juntas, havendo uma unidade entre autoridade civil e religiosa. O estado sem Igreja deve ser limitado e reduzido, porque acaba utilizando da força para fazer valer seu ordenamento jurídico. O estado laico monopoliza o uso da força, e o poder moderador ou executivo acabam por não darem satisfações a ninguém. Quanto maior o estado, maior a corrupção e menor a liberdade (embora não deva haver liberdade para se praticar o mal). E ele se torna ainda mais perigoso quando é comandado por leis genéricas elaboradas para satisfazerem as classes de ofendidos e ressentidos, genocidas em potencial, prontos para destruírem todos os fundamentos espirituais e culturais de uma civilização. Na diversidade promovida pelos igualitários, só não há espaço para brancos, héteros e católicos.

É fato consumado que os africanos sempre conheceram a escravidão. Os escravos que vieram ao Brasil eram delinquentes e marginais, além de tribos fracas escravizadas por tribos mais fortes (por exemplo os zulus, que até hoje escravizam os pigmeus), vendidos pelos próprios comerciantes africanos mesmo. Os europeus também foram escravizados, por muçulmanos durante quase um milênio, porém resgatar isto não importa. Não creio que a colonização europeia no Brasil tenha sido assim tão sem proveito quanto a nossa intelligentsia reinante afirma. Os portugueses encontraram aqui indígenas ágrafos, que viviam na idade da pedra, ou seja, não conheciam a roda nem o metal, mas, graças aos jesuítas, em poucas décadas já falavam latim e tocavam música sacra. De um povo que não conhecia a roda e andava arrastando as coisas (sem falar na antropofagia e no infanticídio) para um povo que lia filosofia greco-romana e estudava português e latim, creio que há nisso um relativo progresso. Do ponto de vista civilizacional, o que é um terreiro de candomblé, onde se sacrifica animais em troca de favores de demônios enfurecidos e viciados, em comparação com a obra pujante e superior da Santa Igreja Católica!? 

Vale a pena submeter uma esmagadora maioria, interferindo diretamente em suas vidas (incluso na educação de seus filhos) e modificando suas leis, somente para atender aos interesses de uma minoria insignificante numericamente? Atualmente ser feio, gordo, negro, gay, deficiente físico ou mental e tutti quanti (ou seja, tudo o que não é caucasiano, hétero e cristão) agrega valor. Algo que é de uma superficialidade exagerada, pois, particularmente, não vejo maior ou menor virtude em alguém pela cor da pele. Penso que se equipara ao animal quem possui como maiores motivos de orgulho um fator meramente biológico como é o tom da pele, ou então a forma pela qual escolheu transar. Há quem gosta de felar um membro sujo de cocô, mas é problema pessoal de quem escolheu fazê-lo. No fim das contas, não nos resumimos aos sentidos corporais! O animal sabe somente buscar o prazer e fugir da dor, mas o homem que regra suas paixões e submete seus sentidos à razão, respeitando a natureza, entende que há prazeres que devem ser evitados e dores que devem ser buscadas. A correção política é um ideal imperialista para destruir nossos alicerces. O mais importante para os grupos majoritários que não são contemplados pelo lobismo globalista é não se sentirem culpados, nem pedirem perdão pelo que são. Falar a verdade hoje, “onde a grama não é mais verde” (G.K. Chesterton), é ser visto como inimigo mortal pelos emissários da horizontalidade, do nivelamento das relações. 

O nosso estado é laico, porém ele prefere submeter seu ordenamento jurídico aos planos trans-constitucionais inspirados na “Liga das Nações” kantiana, irradiados de um vigilante todo-poderoso como a ONU, propagador de um ideal liberal-burguês, onde a última palavra vem do conceito subjetivo e generalista de "humanidade", estando no topo do topo da pirâmide de Kelsen; ordenamento jurídico este que não atende à maioria Romano-Cristã da nossa população. Para Roger Scruton “ninguém tem o poder para vigiar esses vigilantes, já que a cadeia de prestação de contas que permite que os cidadãos comuns os removam do cargo foi eficazmente rompida. Em suma, a prestação de contas é um subproduto natural da soberania nacional que é posto em perigo pelo governo transnacional.” Quis custodiet ipsos custodes?” (“Quem vigia os vigilantes?”), perguntaria o poeta romano Juvenal. Segundo Carl Schmitt "a Humanidade não é um conceito político. A Humanidade das doutrinas fundadas sobre o direito natural, liberais e individualistas, é uma construção social ideal de carácter universal, ou seja, englobando todos os homens da terra. Esta sociedade universal não conhecerá mais os povos. O conceito de Humanidade é um instrumento ideológico particularmente útil às expansões imperialistas e, sob a sua forma ética e humanitária, é o veículo específico do imperialismo econômico.” Nossa atual constituição, assim como a maioria das constituições dos países ocidentais (ou ocidentalizados), não é soberana, acima dela estão princípios alógenos formalizados em tratados e convenções internacionais impostos por meio de sanções. O plano é, sem ocultar a ninguém, desavergonhadamente, reduzir cada vez mais as distâncias e diferenças jurídicas, elaborando uma única constituição para todos os países de cada continente e, no futuro, uma só que abarque todo o globo terrestre, sem respeitar tradições, religiões, culturas e línguas. Há igualmente um plano globalizante no âmbito econômico, que não será abordado aqui, mas prometo retornar à questão.

“O estado é laico!” Vociferam os arautos do caos. A constituição de 1988 está submetida a valores estrangeiros, mas o código penal, mesmo em conformidade com a “Carta Magna”, reza o que todos preferem esquecer: a discriminação religiosa é crime! Está no Art. 208 do CP: “Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso: Pena - detenção, de um mês a um ano, ou multa.” Desta lei, que prevê sanção penal, ninguém se lembra quando o objeto de culto vilipendiado é cristão (a religião "opressora"), menos ainda quando a classe sofre um verdadeiro holocausto com em torno de 100 mil assassinatos por ano no mundo (*). E se chama arte colocar o crucifixo no ânus ou escrever palavrões em hóstias consagradas... 

Muito do preconceito anticatólico vem da elite pseudointelectual dita "científica" que, decrépita e carcomida, pulula as cátedras de nossas universidades paulofreirianas. Ciência significa substituição constante de ideias, o que não acontece na academia desde a penetração da “teoria crítica” e das exigências do Maio de 68, transformando esse sistema educacional no mais reacionário e dogmático do planeta. Desafio quem já viu alguma conferência ou congresso sobre marxismo, freudismo ou "direitos humanos" abertos ao contraditório, possibilitando uma condução dialética do tema. A nomenklatura brasileira encontra-se confortável como sempre, soberana, influenciando diretamente a mídia e em consonância com os ideais globalistas, internacionais, multiculturais e ateus.

O que está em jogo é a nossa sobrevivência, como pessoas e como famílias. Nesse tabuleiro de xadrez, os peões se revoltaram contra o rei, tendo unicamente os bispos para defendê-lo! Em política, a fina arte de escolher o mal menor, sem ideologias e utopismos, é exclusividade de quem leva uma vida autenticamente intelectual e erudita. A ação cultural com o resgate de nossa história e o rechaço ao neomodernismo devem ser as prioridades de todos nós, seres pensantes.

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(*) http://g1.globo.com/mundo/noticia/2013/05/cem-mil-cristaos-sao-mortos-por-ano-por-razoes-ligadas-a-fe-vaticano.html

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Pequena Regra de Vida

Galahad e o Graal, por Edwin Austin Abbey.

“Que não reine em ti, nem nos sentidos, nem na vontade, nem no afeto, desejo pelas coisas terrenas.” (São Boaventura)

por Davi M. Simões

Esta regra foi escrita para mim mesmo e para todo aquele que quiser tirar proveito. Encontrando-me no estágio inicial da vida mística, conhecendo todos os meus vícios e limitações, sistematizei alguns ensinamentos mais que básicos para seguir adiante no combate espiritual. Quem inicia nessa via percebe muitos obstáculos a transpor e não demora a entender que não há volta. Tudo muda: visão de mundo, forma de se portar e as relações interpessoais. A sensibilidade aumenta e o gosto se refina. Mas assim como podemos ser maus e virarmos bons, o oposto também acontece, e quanto mais alto subimos, maior e mais rápida a queda. A verdade é que quem um dia foi águia, não quer ser pomba, e a águia precisa frequentemente caçar e rapinar.

“Quanto mais subia

ofuscava-se-me a vista,

e quão maior a conquista

mais escuro se fazia;

mas sendo do amor a lei,

dei um cego e obscuro salto,

e fui tão alto, tão alto,

que minha caça alcancei.”

(São João da Cruz)

Nos adiantados o gozo e a alegria da oração desaparecem, e não é raro serem atacados por tentações e doenças espirituais gravíssimas (como o escrúpulo, por exemplo). Mas eles sabem que é a alma sendo forjada pelo Pai, como o ferreiro forja a espada ao fogo. Assim sendo, rezemos não para nos sentirmos felizes, mas para perseverarmos em busca da coroa que ganharemos nos Céus. 

Os modernos nunca entenderão o que faz alguém se anular, se destruir, se aniquilar e enlouquecer por amor ao Cristo. Nunca conceberão por que alguém ama mais a Deus – para eles um conceito abstrato, um mito opressivo que nos enche de culpa – do que todos aqueles que ele vê e toca, mesmo sendo o parceiro ou o familiar. Aos virtuosos, todos os que combatem e vencem, não há nada mais prazeroso do que subjugar a carne em função do Espírito. Com efeito, neste breve e humilde artigo, o mais importante não pode ser descrito, está subentendido aos poucos que experimentam a verdadeira felicidade na guerra sem tréguas contra a carne, o mundo e o demônio. 

“A felicidade não é justamente aquilo que todos querem, não havendo ninguém que não a queira? Onde a conheceram para assim a desejarem? Onde a viram para amá-la tanto? Que a possuímos, é certo, mas não sei de que maneira. Há um modo de possuí-la que nos torna felizes, e há os que são felizes pela esperança de possuí-la. (...) Há uma alegria que não é concedida aos ímpios, mas àqueles que Te servem por puro amor; essa alegria és Tu mesmo, e esta é a felicidade: alegrar-nos em Ti, de Ti e por Ti. É esta a felicidade, e não outra. Quem acredita que exista outra felicidade, persegue uma alegria que não é verdadeira.” (Santo Agostinho). 

Começa a regra: 

Observar os Dez Mandamentos é pré-condição para quem deseja ser cristão. Eles são a base do bom convício social e os fundamentos da nossa civilização. Quem viola qualquer dessas leis fica em pecado mortal, devendo repará-lo imediatamente pela confissão contrita. Temer e tremer diante da ameaça do tormento eterno é o princípio da Sabedoria. “Ai daqueles que morrerem em pecado mortal!” (São Francisco). 

Na lei mosaica o Homem é afastado do mal e induzido ao bem pelo temor, mas a perfeição só é alcançada com a prática do Sermão da Montanha, a lei do amor, que nos une a Cristo Jesus nos dando forças para entregarmos nossa vontade a Deus, mesmo sob perseguição e ameaça de morte. Deus acolhe todos aqueles que o amam, se arrependem e se penitenciam pedindo perdão ao sacerdote com a determinação de não pecarem mais, se possível chorando os males cometidos. 

Antes da mística devemos passar por um processo de purificação, que se chama ascese. O meio é a radical aniquilação de si mesmo, para o fim último que é a divinização (ou deificação, para os orientais). Além de observar os Dez Mandamentos e praticar o Sermão da Montanha, há 12 requisitos que precisam ser virilmente perseguidos se quisermos alcançar a união com o Uno: 

1 – O Credo Apostólico nos dá o conhecimento do que devemos crer; 

2 – Frequentar os sete sacramentos da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana na sua forma tradicional. Confessar e comungar sempre que possível. Analisar nossas faltas ao fim do dia antes de deitar, já que não há garantia de amanhecermos com vida. “Vigiai, pois não sabeis o dianem a hora.” (Mt 25,13); 

3 – Não dormir muito: o sono nos faz perder tempo e o descanso excessivo deixa a alma satisfeita. Desconfie daquele que prega o bem-estar e a satisfação em vez do sacrifício e da violência contra si mesmo. “O sofrimento é o paraíso na terra.” (São Francisco de Assis).

4 – Mortificar a visão: evitar a vã curiosidade, nos afastando dos escândalos e burburinhos do mundo. Olhar e assistir somente ao que for edificante"Não se deseja o que não se vê” (São Francisco de Sales). Contemplar a beleza da natureza criada e da Arte Sacra, que é inspirada pelo Espírito Santo. É belo e bom tudo o que se aproxima da Verdade, e, ao contrário do que dizem os modernos, que todos os caminhos estão certos, nós afirmamos que todos os caminhos estão errados, exceto um. Só reconhece a feiura e a maldade, quem, com um mínimo de senso estético, de proporção e simetria, sabe o que é belo e bom. O monstruoso e o disforme causam repulsa ao homem virtuoso. Também é mister rejeitar literatura proibida, principalmente esotérica e filosofia judaica e alemã. Os melhores livros serão sempre a Bíblia Sagrada (principalmente os Livros Sapienciais, os Evangelhos de São Mateus e São João e as Epístolas de São Paulo), o Imitação de Cristo, o Catecismo de São Pio X e a regra e os escritos do santo de devoção;

5 – Mortificar o tato: ele está atrelado diretamente à potência sexual. Evitar a sensualidade agindo com modéstia e discrição, sem querer ser desejado. O uso do cilício ajuda a nos disciplinar. Como cavaleiros de Cristo entendemos que o corpo é o cavalo e a alma é o cavaleiro; dominemos, pois, a besta com rédea curta. “O Espírito do senhor quer que a carne seja mortificada e desprezada, vil e abjeta.” “E tenhamos ódio aos nosso corpo com seus vícios e pecados” (São Francisco de Assis); 

6 – Mortificar o paladar: enquanto alguns passam fome, outros preferem comer até vomitar. Não comer até a saciedade e se envergonhar caso assim proceder. O alimento existe para nutrir o corpo e não devemos ser glutões como os animais. A alimentação duas vezes ao dia é mais que suficiente, evitando o excesso de carne vermelha e doces, embora nunca recusando o que nos for servido. O jejum purifica o corpo, limpa a mente e agrada a Deus, e pode ser feito às quartas e sextas. Também controlar a língua, pois a boca fala do que o coração está cheio. “Os murmuradores e detratores são odiosos para Deus” (São Francisco de Assis). “Palavra ociosa é a proferida sem necessidade pra quem fala e sem utilidade pra quem ouve”. “De ter falado muitas vezes me arrependi, de ter calado, nunca.” “Tardança em falar, prontidão em obedecer” (São Boaventura). Ser alegre e bem-humorado (mesmo nas adversidades) não significa rir e fazer rir a todo tempo, como os jovens, as mulheres vulgares e os palhaços;

7 - Mortificar o olfato: não querer sempre sentir cheiros agradáveis ou se banhar de perfume como fazem as prostitutas. Renuncia a todos os vãos perfumes, sejam quais forem; suporta, antes, de boa vontade, o mau cheiro que reina em geral nos quartos dos doentes. Imita o exemplo dos Santos que, animados pelo espírito de caridade e mortificação, sentiam tanto gosto no ar corrompido das enfermarias, como se estivessem em jardins de flores odoríferas” (Santo Afonso Maria de Ligório);

8 – Mortificar a audição: o silêncio é a mais perfeita música. Não sendo possível o silêncio absoluto, preferir os sons baixos e agradáveis como o canto dos pássaros e dos grilos na natureza. Não consumir música pagã nem de origem africana, por serem excessivamente tribais e sensuais. Evitar músicas agitadas, principalmente à noite. Deus não mora onde há agitação; 

9 – Regrar as paixões e controlar os vícios capitais: as paixões, assim como o prazer, não são condenáveis, desde que em concordância com o uso da razão e que convenham à natureza. “Ninguém pode viver sem algum prazer sensível e corporal, porém nas coisas morais há um prazer que é bom, pelo fato de que o apetite superior ou inferior repousa no que convém à razão” (Santo Tomás). Nossas paixões devem ser ordenadas pela prudência; por exemplo a raiva, que ninguém negaria ser lícito usá-la para confrontar uma injustiça – vide Nosso Senhor chicoteando os vendilhões do templo. Sendo as paixões muito fortes, podem inclusive obscurecer ou obstaculizar o livre arbítrio da vontade. Mas as paixões não são, em si mesmas, algo bom ou mal, mas naturais, pois são disposições que devem favorecer a inclinação do homem, por seus atos, ao bem de sua natureza e ao fim último a que se inclina, mediante os bens particulares que se lhe disponham a vida” (Santo Tomás). Sobre os vícios capitais (chamam-se capitais porque são como que a cabeça, a fonte de todos os pecados), devemos contrapô-los com as virtudes contrárias: a castidade (pureza) contra a luxúria, a caridade (generosidade) contra a avareza, a temperança (moderação) contra a gula, a diligência (persistência) contra a preguiça, a paciência (serenidade) contra a ira, a bondade (compaixão) contra a inveja e a humildade (modéstia) contra a vaidade. 

10 – Direcionar o intelecto ao Primeiro Princípio, que é o Sumo Bem e a Suma Beleza: o estudo da física, da metafísica e da teologia pode ser feito, desde que não nos esqueçamos do reto agir, fazendo tudo pela glória de Deus. E não nos ensoberbeçamos com o conhecimento adquirido, pois Lúcifer, por ter sido um anjo, sabe mais das coisas de Deus do que nós. Sejamos católicos vivendo e falando catolicamente, sem querer usar palavras difíceis, pois Deus mostra às pessoas sem instrução aquilo que esconde dos sábios e instruídos. A inteligência e a beleza são presentes de Deus; nossos são somente o pecado, a ignorância e tudo quanto é mau e defeituoso. “Não é suficiente a ciência sem a caridade, nem a inteligência sem a humildade” (São Boaventura); 

11 – Dedicar a Deus a própria vontade: submeter-se a Deus, ao próximo e aos inferiores, desde que não cause danos à alma. Saber ouvir e obedecer ao confessor e ao diretor espiritual. Praticar heroicamente as virtudes da bondade, humildade, mansidão e caridade, sem esquecer de antes ser justo e equânime. “São amigos os que injustamente nos causam tribulações e angústias, vergonhas e injúrias, dores e tormentos, martírio e morte, aos quais devemos amar muito, porque temos a vida eterna por aquilo que nos causam” (São Francisco de Assis); 

12 – Ser manso: “é quase impossível praticar a mansidão sem a humildade. (...) Para ser manso é preciso um certo domínio de si mesmo que previne e modera os movimentos da cólera; suportar os defeitos do próximo, que exige paciência; e o perdão das injúrias e a benevolência para com todos, até para com os inimigos. (...) A mansidão pratica-se para com o próximo, mas também para conosco, bem como para com os seres animados e inanimados. (...) A máxima utilidade da mansidão é fazer reinar a paz na alma, paz com Deus, com o próximo e conosco: com Deus, porque nos faz aceitar os acontecimentos com paz e serenidade; com o próximo, porque nos faz suportar seus defeitos; para conosco, quando cometemos uma falta e não nos impacientamos nem irritamos” (Adolphe Tanquerey).

Que em nossas orações e Terços diários meditemos atentamente a Paixão de Nosso Senhor: a perseguição, as cusparadas, os açoites, os sofrimentos d’Ele e de Sua mãe, e Sua morte gloriosa, que teve como objetivo nos livrar de nossos pecados.

Sobre tal acontecimento trata sublimemente Santo Afonso Maria de Ligório: “a história narra-nos um caso de um amor tão prodigioso que será a admiração de todos os séculos. Havia um rei, senhor de muitos reinos, que tinha um único filho, tão belo, tão santo, tão amável, que, sendo o encanto do seu pai, este o amava como a si mesmo. Ora, este príncipe se afeiçoou grandemente a um escravo e tendo este cometido um delito, pelo qual fora condenado à morte, o príncipe se ofereceu a morrer por ele. O pai, amante apaixonado da justiça, resolveu condenar seu amado filho à morte, para livrar o escravo do castigo merecido. E assim aconteceu: o filho morreu justiçado e o escravo ficou livre. Este caso, que uma só vez se deu e nunca mais se repetirá no mundo, está consignado nos santos evangelhos, onde se lê que o Filho de Deus, o Senhor do universo, vendo o homem condenado à morte eterna por causa do pecado, quis tomar a natureza humana e pagar com sua morte a pena devida pelo homem. ‘Foi oferecido porque ele mesmo o quis’ (Is 53,7). E o Eterno Pai o fez morrer na cruz para nos salvar a nós, míseros pecadores. ‘Não poupou a seu próprio Filho, mas o entregou por nós todos’ (Rm 8,32).

A soberba foi a causa do pecado de Adão e, por conseguinte, a ruína do gênero humano; por isso veio Jesus Cristo e quis reparar esse desastre com sua humildade, não desdenhando abraçar a confusão de todos os opróbrios que lhe prepararam seus inimigos, como já predissera Davi: ‘Porque por vossa causa suportei o opróbrio e a vergonha cobriu a minha face’ (Sl 68,8). A vida inteira de vosso Redentor foi cheia de confusão e desprezos que recebeu dos homens, e ele não recusou suportá-los até à morte, a fim de nos livrar da confusão eterna: ‘Tendo-lhe sido oferecido o gozo, sofreu a cruz, desprezando a ignomínia.’ (Hb 12,2).”

A recompensa para quem perseverar até o fim contra a carne, o demônio e este mundo fétido e miserável, será ser cidadão do Reino dos Céus. Para isto tenhamos Cristo como arquétipo, que foi o homem mais perfeito a andar sobre a terra, e lembremos que Ele estará conosco até o fim dos tempos.

Amém! 

segunda-feira, 30 de abril de 2018

Apologia à Castidade


por Davi M. Simões

A castidade é tão importante para o catolicismo, que dois mandamentos do Decálogo tratam da matéria: o sexto e o nono. 

Ao criar o homem e a mulher Deus ordenou que crescessem e se multiplicassem. Segundo a ordem natural o ato sexual tem como finalidade a reprodução, reservando Deus o orgasmo como prêmio à fidelidade matrimonial. O matrimônio não visa a satisfação pessoal de qualquer das partes, mas é uma tarefa de muita abnegação, que transforma homem e mulher em uma só carne, dando aos mesmos a possibilidade de povoar o mundo com um ser ainda melhor e mais aprimorado em caráter e continência, modéstia e virtudes. Embora, dependendo do caso, a castidade possa representar uma atitude egoísta, o mesmo acontece com o matrimônio, se vindo de um desejo exagerado e desordenado. 

O celibato é uma vocação, uma condição reservada aos ainda não casados e aos que fizeram voto de castidade. Também os homossexuais são chamados ao celibato, caso não consigam deixar a prática sodomita. Deus antes de ser bom é justo, por isso ele perdoa nossos pecados, mas desde que nos arrependamos. Vemos uma clara inversão do clero progressista ao omitir a importância do arrependimento e crê-lo desnecessário até mesmo no sacramento da confissão, onde se costuma dar conselhos mundanos e libertinos sem base teológica e estranhos inclusive ao catecismo modernista de 1992, que é displicente em questões capitais. Nosso Senhor Jesus Cristo não veio aos bons, nem aos puros, Ele veio aos sujos e proscritos, aos perdidos e insensatos. Ele ama os sofredores, mas desde que Lhe peçam perdão! No caso dos esquerdistas, que possuem o monopólio da bondade, da pureza e da inteligência, nada disso é preciso, Deus em nada os proíbe e já lhes garantiu os Céus. 

Um matrimônio só pode ser dissolvido em caso de adultério, pois o Homem não deve separar o que Deus juntou. O concubinato e a fornicação são malvistos por Deus, e quem os pratica está em pecado mortal, que se caracteriza pela desobediência a qualquer mandamento do Decálogo. Como disse São Luís Maria de Montfort, “há menos eleitos do que se pensa, só os corajosos e os violentos arrebatam o céu de viva força; ninguém será lá coroado se não houver combatido legitimamente, segundo o Evangelho, e não segundo a moda.” (...) “Estes pertencerão ao pequeno rebanhozinho que segue Jesus Cristo em lágrimas, em penitências, em orações e em desprezo do mundo.” O vislumbre de uma união com Deus só é possível a quem segue os Dez Mandamentos, infringi-los acarreta a punição eterna! 

Posto isso, dito e repetido palavras que provavelmente causam ojeriza a qualquer hedonista moderno, criatura do livre exame protestante, da religião fundada pelo depravado sexual e adestrador de primatas, o judeu Sigmund Freud, do Maio de 68 e da revolução sexual do também judeu Herbert Marcuse, quero afirmar que o católico combatente, integrante da Igreja militante, possui uma cosmovisão vertical e transcendente inalcançável aos pensamentos da moda, fincada na rocha que é a Tradição bimilenar, síntese da dialética entre a Revelação dos semitas e a filosofia dos jônios, e vê o mundo, ao contrário do progressista com seu “progresso contínuo e indefinido”, sofrer um vertiginoso processo de decadência que é imparável! O tradicionalista percebe que, pelos sinais da história, muito em breve o que atende pelo nome de “ser humano”, rastejará como um animal repulsivo, escravizado irremediavelmente pelos sentidos, como cadela no cio. O que hoje se chama “Homem”, é um ser que dorme, que mendigando liberdade e vociferando por direitos nada mais faz do que comer o próprio vômito. Todos opinam, as bocas se mexem, mas só se escutam grunhidos. A internet democratizou a barbárie, mas nada se extrai de lógico, consistente e relevante dos cérebros entorpecidos pelas promessas kantianas de paz e felicidade universais. “Não somente todo mundo dorme” – disse Léon Bloy – “mas de tanto dormir, todo mundo tornou-se cego, mesmo em seus sonhos, de modo que só poderia despertar às apalpadelas, com um medo horrível de ser subitamente precipitado nas profundezas.” O “peregrino do absoluto” também constatou o que bem percebem todos os justos: “É aterrador pensar que subsistimos em meio a uma multidão de mortos que parecem estar vivos; que o amigo, o companheiro, talvez o irmão, que vimos pela manhã e que reveremos à noite tem apenas uma vida orgânica, uma aparência de vida, uma caricatura de existência e que mal se distingue, em realidade, daqueles que se liquefazem nos túmulos.” 

A castidade nos aproxima dos anjos e nos torna deuses. Os anjos, por não possuírem os sentidos, pois são somente Espírito, ou seja, vontade e intelecto, são virtuosos por natureza e não precisaram combater como nós combatemos ao ordenarmos as paixões e submetermos a carne à razão. Homens divinizados, na Vida Eterna, são venerados e respeitados pelos anjos, pois são vitoriosos que passaram por provações impensáveis antes de triunfarem sobre a carne, o mundo e demônio. A castidade não é só a continência sexual, o fim das práticas dos prazeres solitários (onanismo) e da fornicação, mas a pureza de mente e de coração. A continência é a principal virtude do celibatário, que precisa antes controlar a curiosidade, o sentido da visão, a mente, o coração e o tato, nesta ordem. O sentido do tato é o que está diretamente atrelado à sexualidade e precisa ser mortificado (usar o cilício e outras disciplinas é de extrema ajuda). O aspirante ao celibato não pode ter momentos de ócio não criativo, de pura desocupação, necessita estar sempre focado em labores manuais e/ou intelectuais, bem como nunca se encontrar satisfeito e confortável: não comer até a saciedade e dormir somente o imprescindível. O homem superior, que pratica o celibato, não perde a masculinidade, muito pelo contrário, a pureza viriliza seu caráter, o fazendo ainda mais viril que aquele que se submete à matéria, pois ganha a maior das batalhas tornando todos os outros mandamentos mais fáceis, podendo se dedicar mais perfeitamente à outras áreas, principalmente ao aprimoramento físico, moral e intelectual, e à oração. O maior cuidado que se deve ter é de não se ensoberbecer, pois o casto passa a observar o mundo de cima pra baixo, como que do alto de um pico nevado. Em um mundo tão sensualizado, onde tudo é duplo sentido e as relações entre os sexos visam exclusivamente a fornicação e o gozo dos sentidos, o continente se sente realmente liberto e saudável. Mas, primeiramente, devemos confiar em Deus, nunca em nós mesmos, já que as tentações são diárias. 

Foi o amor a Deus e o temor do inferno que fez São Bento resistir aos maus pensamentos pulando sobre espinhos, São Francisco rolando na neve e Santa Clara nunca olhando um homem no rosto. Foi a vontade de união com Deus e o gozo em praticar o ascetismo submetendo a carne, que inspirou os santos a fazerem coisas absurdas aos olhos dos homens sensuais, mas que deveriam ser a obrigação de todo aquele que quer ser alguém melhor. Nossa Senhora, que nasceu imaculada, sempre virgem - pois o puro não nasce do impuro -, deve nos inspirar e iluminar com seu exemplo de total entrega a Deus, juntamente com seu castíssimo esposo São José, guardião da Igreja e homem predestinado, pai adotivo e educador de Nosso Senhor Jesus Cristo. 

Um homem podendo se divinizar só escolhe permanecer homem por tibieza, pois a religião Católica é a mais difícil de seguir sendo pari passu abominável aos olhos dos modernos, que não são muito melhores que moscas à procura de putrefação e dejetos.

“Ó santa pureza, és o templo do Espírito Santo, a vida dos Anjos e a coroa dos Santos!". (Santo Atanásio).

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Si Vis Pacem, Para Bellum


por Davi M. Simões

As civilizações pagãs eram civilizações guerreiras par excellence e eram todas organizadas em castas. O sistema de castas era hereditário e seus integrantes só podiam casar com indivíduos do mesmo grupo. Entre os arianos a casta mais prestigiada era a dos chátrias, os guerreiros, a que melhor expressava o sentimento ancestral de rebelião e revolta contra a Criação, comportamento característico de nossa condição decaída, já que Lúcifer foi o primeiro revolucionário. Esses homens eram seres inescrupulosos e quase bestiais, homens-animais sedentos por sangue, famintos por ódio e motivados pela vingança. Na guerra evocavam animais de poder e atacavam com um furor não encontrado nem no mais selvagem predador de rapina. Os povos arianos surgiram no Vale do Indo (hoje Paquistão e norte da Índia) e se espalharam por todo o Hemisfério Norte, do Cáucaso à Grécia, do Norte da África ao Extremo Ocidente, originando os vikings, espartanos, romanos, celtas, lusitanos etc. A religiosidade desses povos estava sob a influência dos anjos caídos, chamados por eles de “deuses”, e a moral, bem como a caridade, eram desconhecidas, até o começo da Cristandade.

Ainda antes do processo civilizatório e moralizante Romano-Cristão, para o observador mais atento, a guerra e a religião andavam juntas, amalgamadas. O que o cristianismo trouxe de novo foi que pela primeira vez, desde a Batalha da Ponte Mílvia, os guerreiros eram também religiosos, pois todo cristão é chamado à santidade, e para seguir Jesus Cristo é necessário preservar valores morais e preceitos que até então eram praticados exclusivamente por sacerdotes. O guerreiro cristão é também um religioso, une em si mesmo as duas castas superiores: chátria e brâmane. Assim foi o grande arquétipo da cavalaria cristã São Jorge da Capadócia (mais ou menos 300 d.C.), um capitão da cavalaria romana que, ao ver a perseguição perpetrada pelo imperador Diocleciano contra os devotos de Nosso Senhor, fez questão de afirmar publicamente sua fé e, mesmo baixo insuportáveis torturas, após resistir à inúmeros tormentos como o sal em suas feridas, até ser morto decapitado, não hesitou em declarar reiteradas vezes: “todos os deuses dos pagãos são demônios!”

Personificando guerra e religião, os templários elevaram esse caráter dúplice à máxima potência, adotando uma regra como fazem as ordens religiosas, cumprindo os votos de obediência, pobreza e castidade, e cultivando o heroísmo tão característico dos primeiros mártires, sendo admirados e temidos pelos inimigos. São Bernardo de Claraval presta seu famoso “elogio da nova milícia dos templários”: 

“Este é um gênero de milícia não conhecido nos séculos passados, no qual se dão ao mesmo tempo dois combates com um valor invencível: contra a carne e o sangue e contra os espíritos de malícia espalhados pelos ares. Em verdade, acho que não é maravilhoso nem raro resistir generosamente a um inimigo corporal somente com as forças do corpo. Tampouco é coisa muito extraordinária, se bem que seja louvável, fazer guerra aos vícios ou aos demônios com a virtude do espírito, pois se vê todo o mundo cheio de monges que estão continuamente neste exercício. Mas quem não se pasmará por uma coisa tão admirável e tão pouco usada como é ver a um e outro homem poderosamente armado dessas duas espadas, e nobremente revestido do caráter militar?

Seu espírito se acha armado do elmo da fé, da mesma forma que seu corpo da couraça de ferro. Estando fortalecido por essas duas espécies de armas, não teme nem aos homens nem aos demônios. E digo mais: não teme a morte, posto que deseja morrer. Com efeito, o que pode fazer temer, seja a morte ou a vida, quem encontra sua vida em Jesus Cristo e sua recompensa na morte? É certo que ele combate com confiança e com ardor por Jesus Cristo, entretanto deseja mais morrer e estar com Jesus Cristo, porque este é seu fim supremo.

Oh! Com quanta glória voltam do combate esses vencedores! Oh! Com quanta ventura morrem esses mártires na peleja! Regozija-te, campeão valoroso, de viver no Senhor, mas regozija-te ainda mais de morrer e ser unido ao Senhor. Sem dúvida tua vida é frutuosa e tua vitória gloriosa, mas tua morte sagrada deve ser preferida com justa razão a uma e a outra. Pois se os que morrem no Senhor são bem-aventurados, quanto mais não o serão aqueles que morrem pelo Senhor. Em verdade, de qualquer maneira que se morra, seja no leito, seja na guerra, a morte dos santos será sempre preciosa diante de Deus. Mas a que ocorre na guerra é tanto mais preciosa, tanto maior é a glória que a acompanha.

Os soldados de Cristo poderão, com absoluta segurança de consciência, pelejar as batalhas do Senhor, sem receio de cometer pecado com a morte do inimigo, nem desconfiança de sua salvação se sucumbirem. Porque dar ou receber a morte por Cristo não só não implica ofensa a Deus, nem espécie alguma de culpa, mas pelo contrário merece muita glória.

Quando tira a vida a um malfeitor, não deve ser chamado homicida, porem "malicida", se é que assim me posso expressar; pois ele executa literalmente as vinganças de Cristo contra os que praticam a iniquidade, e adquire com razão o título de defensor dos cristãos. E se é morto, não dizemos que se perdeu, mas que se salvou. A morte que ele dá é para a glória de Cristo; e a que recebe é para sua própria glória.

Saia pois de sua bainha a dupla espada espiritual e material dos cristãos, e seja descarregada com força sobre a cerviz dos inimigos para destruir assim tudo quanto se ergue contra a ciência de Deus, isto é, a fé dos seguidores de Cristo, para que não digam jamais esses infiéis: ‘Onde está o seu Deus?’”

Para ilustrar o destemor dos templários, vale um breve relato de Cláudio de Cicco sobre os monges guerreiros (*):

“Um templário é preso pelos turcos, que o amarram a uma cruz e o colocam sobre a muralha da cidade, para evitar o ataque dos outros cavaleiros templários. Mas, ao chegarem estes, o próprio prisioneiro insistiu em que deviam atacar a cidade mesmo ao preço de sua vida. E, realmente, os turcos ficaram muito espantados quando viram que os cavaleiros se organizaram e marcharam em direção à cidade, imediatamente matando o cavaleiro com uma lança (com isso se completou o simbolismo da cruz e da lança).” 

Por intermédio de seu Filho unigênito, o Nosso Deus criou uma religião que ama a guerra, e não há nada com maior caráter civilizacional do que quando religião e guerra se complementam. Todas as grandes civilizações antigas, mesmo praticando os erros tão peculiares dos pagãos como sacrifícios humanos, suicídios, incestos, orgias, infanticídios etc. tinham na guerra e nos seus “deuses” a receita da continuidade de sua tradição e o motivo da expansão de seu espaço vital. Nesta alta-modernidade que, segundo Anthony Giddens, “é uma ordem pós-tradicional, que, longe de romper com os parâmetros da modernidade propriamente dita, radicaliza ou acentua as suas características fundamentais”, o homem emasculado pós-cristão e neo-pagão não ousa nem ao menos esboçar uma reação violenta de autodefesa, quando mais de ataque. Ele não medita sobre a morte, nem sobre “o sentimento trágico da vida” (Miguel de Unamuno)“Ensinam os autores espirituais que, quando meditamos sobre a morte é para vivermos bem. A ciência pode tornar mais agradável a vida, pode contribuir para prolongá-la. Mas há valores que estão acima da própria vida. E mais vale morrer salvando esses valores do que viver indignamente” (José Pedro Galvão de Sousa). Nunca o ser humano esteve tão desprovido de sentido e de causa, tão vazio de sacralidade e de ritos verdadeiramente transcendentes. O que resta é um arremedo de tradição degenerado em costumes que são seguidos de forma mecânica, involuntária, com o único objetivo, sutil e tenuemente, de se manter uma certa coesão e ordem social, ao contrário viveríamos em um puteiro a céu aberto, pior que Sodoma e Gomorra.

Ernst Jünger, filósofo e combatente, um amante declarado das trincheiras, que via a guerra como uma experiência interior, disse que o mundo moderno com o tecnicismo e o automatismo degradou tudo, inclusive a guerra. Citemos como exemplo a extinção dos samurais, que se deu graças ao uso da pólvora levada pelos missionários portugueses, tornando seu estilo de vida anacrônico, algo que já havia se passado na Europa com as ordens de cavalaria. Da pólvora, pondo fim ao confronto físico, iniciando a batalha à distância, avançamos com uma velocidade aterradora aos transportes a vapor, depois aos submarinos, aos fuzis, até a revolução química, reduzindo a guerra à um empreendimento de covardes, nerds operadores de video games. Jünger entendia a guerra como “o mais forte encontro dos povos”, que o combate entre adversários era “coisa sempre de santos”, chegando a afirmar que “viver é matar”. Escreveu em diários seus relatos dos campos de batalha de 1914 e, em sua exaltação quase libidinosa da violência, clamava que o abalo aos fundamentos da civilização, sendo um deles a guerra, “desencadeia bruscas erupções de sensualidade”. Certamente, além da influência dos escritos de Léon Bloy, foi essa aguçada percepção da grandeza da guerra que o converteu ao catolicismo no fim da vida.

Toda a história da humanidade é a espera pelo Redentor. A espera se inicia logo após a Queda e se concretiza graças aos bons judeus que, desde Abraão, passando por Moisés, pelos Reis Davi e Salomão, o profeta Elias e os guerreiros Macabeus resistindo à helenização, pavimentaram o caminho ao Deus Senhor dos Exércitos em meio ao paganismo amoral, imoral, idólatra e divinizador do homem, de seus vizinhos.

Ó doce e feliz culpa, que sem a qual não conheceríamos Cristo Jesus, nem por meio d’Ele, com nosso esforço ascético pessoal, habitaríamos a Morada Celeste, onde só entram os violentos!

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(*) A Igreja Católica, as Ordens de Cavalaria e os Templários, por Cláudio de Cicco: https://www.4shared.com/office/rJAMv395ei/Os_Templrios_-_Cludio_de_Cicco.html

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Intelecto x Vontade


por Davi M. Simões

O que é o Homem? Esta é a pergunta que, desde Max Scheler, a antropologia filosófica tenta responder. Para o filósofo ele é um animal político; para o jurista uma pessoa natural dotada de direitos e deveres na ordem civil; para o economista, um consumidor; para o poeta, o intérprete da natureza; para o humorista, um ser que ri (ou que tem senso de humor); para o imanentista, alguém que pensa antes de existir; para o cientista, um símio que raciocina; para o niilista, algo que deve ser superado; para o pós-estruturalista, tanto faz; para o tomista, um composto de corpo material e alma intelectual; para o franciscano, um mero jarro de barro.

Independente do ponto de vista, uma coisa é certa: neste mundo criado, tudo tem começo e fim, o homem é perecível e o universo também. Ao entendermos que a carne possui prazo de validade e que a alma é eterna, vemos mais nitidamente a vida como uma passagem brutalmente célere. Ao homem virtuoso são necessárias a constante meditação da morte e uma boa relação com a mesma. “Que adianta vivermos muito tempo, quando tão pouco nos emendamos? Oh! nem sempre traz emenda a longa vida, senão aumenta muitas vezes, a culpa. (...) Bem-aventurado aquele que medita sempre sobre a hora da morte, e para ela se dispõe cada dia” (Tomás de Kempis). O muito saber e o muito querer viver acarretam responsabilidades, nos deixam ansiosos, infelizes e destroem nossa inocência. A douta ignorância, tanto das coisas do mundo, como das coisas de Deus, resulta em alegria e felicidade.

 O que nos distingue dos animais? De fato, nós devemos falar de um “reino humano”, que se diferencia dos reinos mineral, vegetal e animal. O Homem compartilha características com os três, mas é um ser de outra categoria, de uma ordem mais elevada. Ele se assemelha aos animais pelos sentidos, a memória e a imaginação, mas somente o Homem possui as potências do intelecto e da volição (vontade), localizadas na região superior da alma, conhecida como Espírito. Os panteístas e ecologistas colocam todos os seres vivos em pé de igualdade, posto que todos os animais são sencientes, mas o Homem é dotado de Espírito e se encontra em dignidade abaixo somente dos anjos.

Há apenas um único problema teológico verdadeiramente sério: a questão do primado entre o intelecto e a volição, a teoria e a práxis. Santo Tomás, o santo filósofo, dizia que é necessário conhecer, penetrar a verdade. Para ele o intelecto precede a volição, pois para querer algo, é preciso primeiro conhecer sobre. Já São Francisco, o santo poeta, dizia que é preciso pregar o evangelho a todo tempo; se necessário, usando palavras. Para ele era suficiente conhecer o Jesus pobre e crucificado, seu paraíso na terra não era o estudo, mas o sofrimento. Ora, se Cristo foi perseguido logo depois de nascer e durante sua curta vida foi incompreendido, vendido, cuspido, torturado, crucificado e sepultado em um túmulo emprestado, por qual razão eu, que sou a própria abjeção humana, preciso de uma situação financeira confortável que, pelo deleite excessivo dos sentidos, me equipararia aos animais, anularia minha coragem heroica e me faria esquecer da minha miserabilidade?

Santo Agostinho disse que elaborar perguntas como “com o que se ocupava Deus antes da criação?” pode resultar na punição do inferno. A filosofia e a teologia não deveriam ser prioridades na vida do franciscano, é mais importante fazer a vontade de Deus, se identificando intimamente com ela, do que tentar entendê-lo. Veja bem, a vontade não está ligada ao desejo, este é proveniente dos sentimentos e das emoções, como o desejo de saber e o desejo de conhecer, que costumam virar vícios e despertar a vaidade. A vontade é uma potência da alma, é uma força que pode, inclusive, se contrapor ao desejo.

A teologia nasceu das apologias de Justino, estudioso de Platão e dos estoicos, na demanda de defender racionalmente a fé contra os ataques romanos. Antes disso era inadmissível à Igreja primitiva e aos primeiros fiéis a leitura de filosofia pagã. O catolicismo foi a única religião perseguida pelos pagãos, a despeito do panteão sincrético destes, onde se somavam mais e mais “deuses” a cada povo conquistado, pois desde sua gênese o cristianismo é intolerante. Os mártires preferiram morrer devorados por leões do que queimar incenso a qualquer um desses ídolos. O catolicismo é a única religião que não pode coabitar com nenhuma outra crença e há dois fundamentos que não devem ser contestados por quem se considera cristão: o Deus único, que violentamente não admite concorrentes, e a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Um “católico” ecumenista é um impostor que, como disse G.K. Chesterton, “respeita todas as religiões, menos a sua.”

A espiritualidade franciscana é cristocêntrica, calcada no tormento da crucifixão de Nosso Senhor e no mistério da Imaculada Conceição de Nossa Senhora. O penitente franciscano procura repudiar sua vontade própria, perdoando quem lhe ofende, mesmo que não lhe peça perdão, protegendo os mais fracos e obedecendo a todos, até aos inimigos (desde que não haja dano à alma). A caridade assistencialista não é obrigatória, São Chico disse que se não fizermos o bem, que pelo menos não façamos o mal. Mesmo quem segue o arquétipo do santo pode cair na mais repulsiva soberba, usando a compaixão para com o próximo como um adorno para sua pretensa santidade. Os demônios estão à espreita e só joelhos dobrados e lágrimas compulsivas nos purificarão do mais asqueroso orgulho que nos prende à nós mesmos, nos tornando imundos para receber Deus. Mas tudo sem perder a alegria de ter nos céus um Pai e sem deixar de nos maravilhar com a perfeição de suas criaturas. Como disse São Paulo em Filipenses 2,5-8: “Tende em vós o mesmo sentimento que houve em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou por usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até a morte e morte de cruz”. Se Cristo se esvaziou de si mesmo, quem sou eu para, como os filhos de Lúcifer, amantes da soberba, ousar ao menos cobiçar um bom lugar no Céu? Os hereges, pecadores obstinados, precisam reconhecer a própria pequenez, os próprios vícios, imposturas e incapacidade perante Deus, entendendo que a menor blasfêmia não ficará impune. Ele é o Senhor e quem se fecha completamente à Sua graça torna-se candidato à eterna morada do inferno. Temer e tremer diante dessa ameaça é o princípio da sabedoria. Quem não compreende isso cai na maior armadilha de Satanás: fazer todos duvidarem de sua existência.

Se somos meros jarros de barro cheios de água suja, não adianta colocar água limpa sem antes esvaziar nossas impurezas: eis a prioridade do asceta que se converterá em místico, praticando ou não o gozo afetivo de Deus. Devemos amar Nosso Senhor, Nossa Senhora (nos assemelhamos ao que amamos), aceitar os dogmas sem contestar e frequentar os sacramentos. Para alcançar a vida eterna o caminho mais seguro e inclusivo é o abandono da própria vontade! Ratifico o que escreveu Tomás de Kempis no "Imitação de Cristo": "Muitos, porém, estudam mais para saber, que para bem-viver; por isso erram a miúdo e pouco ou nenhum fruto colhem. (...) No dia do juízo não se perguntará o que lemos, mas o que fizemos.” Com isso não quero dizer que o tomismo está errado, quero dizer que é dispensável. Ninguém garante a vida eterna porque estudou o trivium e o quadrivium ou sabe o que é "ente" e "essência", "ato" e "potência" e conhece "as cinco vias da existência de Deus".

Santo Tomás não finalizou sua Suma Teológica, no fim da vida ele sofria de êxtases e visões místicas quando confessou a um discípulo: “tudo o que escrevi até hoje parece-me, unicamente, palha, em comparação com o que vi e me foi revelado.” O intelectual sabe que o mel é doce, mas só o místico pode saborear sua doçura e suavidade.