sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Intelecto x Vontade


por Davi M. Simões

O que é o Homem? Esta é a pergunta que, desde Max Scheler, a antropologia filosófica tenta responder. Para o filósofo ele é um animal político; para o jurista uma pessoa natural dotada de direitos e deveres na ordem civil; para o economista, um consumidor; para o poeta, o intérprete da natureza; para o humorista, um ser que ri (ou que tem senso de humor); para o imanentista, alguém que pensa antes de existir; para o cientista, um símio que raciocina; para o niilista, algo que deve ser superado; para o pós-estruturalista, tanto faz; para o tomista, um composto de corpo material e alma intelectual; para o franciscano, um mero jarro de barro.

Independente do ponto de vista, uma coisa é certa: neste mundo criado, tudo tem começo e fim, o homem é perecível e o universo também. Ao entendermos que a carne possui prazo de validade e que a alma é eterna, vemos mais nitidamente a vida como uma passagem brutalmente célere. Ao homem virtuoso são necessárias a constante meditação da morte e uma boa relação com a mesma. “Que adianta vivermos muito tempo, quando tão pouco nos emendamos? Oh! nem sempre traz emenda a longa vida, senão aumenta muitas vezes, a culpa. (...) Bem-aventurado aquele que medita sempre sobre a hora da morte, e para ela se dispõe cada dia” (Tomás de Kempis). O muito saber e o muito querer viver acarretam responsabilidades, nos deixam ansiosos, infelizes e destroem nossa inocência. A douta ignorância, tanto das coisas do mundo, como das coisas de Deus, resulta em alegria e felicidade.

 O que nos distingue dos animais? De fato, nós devemos falar de um “reino humano”, que se diferencia dos reinos mineral, vegetal e animal. O Homem compartilha características com os três, mas é um ser de outra categoria, de uma ordem mais elevada. Ele se assemelha aos animais pelos sentidos, a memória e a imaginação, mas somente o Homem possui as potências do intelecto e da volição (vontade), localizadas na região superior da alma, conhecida como Espírito. Os panteístas e ecologistas colocam todos os seres vivos em pé de igualdade, posto que todos os animais são sencientes, mas o Homem é dotado de Espírito e se encontra em dignidade abaixo somente dos anjos.

Há apenas um único problema teológico verdadeiramente sério: a questão do primado entre o intelecto e a volição, a teoria e a práxis. Santo Tomás, o santo filósofo, dizia que é necessário conhecer, penetrar a verdade. Para ele o intelecto precede a volição, pois para querer algo, é preciso primeiro conhecer sobre. Já São Francisco, o santo poeta, dizia que é preciso pregar o evangelho a todo tempo; se necessário, usando palavras. Para ele era suficiente conhecer o Jesus pobre e crucificado, seu paraíso na terra não era o estudo, mas o sofrimento. Ora, se Cristo foi perseguido logo depois de nascer e durante sua curta vida foi incompreendido, vendido, cuspido, torturado, crucificado e sepultado em um túmulo emprestado, por qual razão eu, que sou a própria abjeção humana, preciso de uma situação financeira confortável que, pelo deleite excessivo dos sentidos, me equipararia aos animais, anularia minha coragem heroica e me faria esquecer da minha miserabilidade?

Santo Agostinho disse que elaborar perguntas como “com o que se ocupava Deus antes da criação?” pode resultar na punição do inferno. A filosofia e a teologia não deveriam ser prioridades na vida do franciscano, é mais importante fazer a vontade de Deus, se identificando intimamente com ela, do que tentar entendê-lo. Veja bem, a vontade não está ligada ao desejo, este é proveniente dos sentimentos e das emoções, como o desejo de saber e o desejo de conhecer, que costumam virar vícios e despertar a vaidade. A vontade é uma potência da alma, é uma força que pode, inclusive, se contrapor ao desejo.

A teologia nasceu das apologias de Justino, estudioso de Platão e dos estoicos, na demanda de defender racionalmente a fé contra os ataques romanos. Antes disso era inadmissível à Igreja primitiva e aos primeiros fiéis a leitura de filosofia pagã. O catolicismo foi a única religião perseguida pelos pagãos, a despeito do panteão sincrético destes, onde se somavam mais e mais “deuses” a cada povo conquistado, pois desde sua gênese o cristianismo é intolerante. Os mártires preferiram morrer devorados por leões do que queimar incenso a qualquer um desses ídolos. O catolicismo é a única religião que não pode coabitar com nenhuma outra crença e há dois fundamentos que não devem ser contestados por quem se considera cristão: o Deus único, que violentamente não admite concorrentes, e a divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Um “católico” ecumenista é um impostor que, como disse G.K. Chesterton, “respeita todas as religiões, menos a sua.”

A espiritualidade franciscana é cristocêntrica, calcada no tormento da crucifixão de Nosso Senhor e no mistério da Imaculada Conceição de Nossa Senhora. O penitente franciscano procura repudiar sua vontade própria, perdoando quem lhe ofende, mesmo que não lhe peça perdão, protegendo os mais fracos e obedecendo a todos, até aos inimigos (desde que não haja dano à alma). A caridade assistencialista não é obrigatória, São Chico disse que se não fizermos o bem, que pelo menos não façamos o mal. Mesmo quem segue o arquétipo do santo pode cair na mais repulsiva soberba, usando a compaixão para com o próximo como um adorno para sua pretensa santidade. Os demônios estão à espreita e só joelhos dobrados e lágrimas compulsivas nos purificarão do mais asqueroso orgulho que nos prende à nós mesmos, nos tornando imundos para receber Deus. Mas tudo sem perder a alegria de ter nos céus um Pai e sem deixar de nos maravilhar com a perfeição de suas criaturas. Como disse São Paulo em Filipenses 2,5-8: “Tende em vós o mesmo sentimento que houve em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou por usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até a morte e morte de cruz”. Se Cristo se esvaziou de si mesmo, quem sou eu para, como os filhos de Lúcifer, amantes da soberba, ousar ao menos cobiçar um bom lugar no Céu? Os hereges, pecadores obstinados, precisam reconhecer a própria pequenez, os próprios vícios, imposturas e incapacidade perante Deus, entendendo que a menor blasfêmia não ficará impune. Ele é o Senhor e quem se fecha completamente à Sua graça torna-se candidato à eterna morada do inferno. Temer e tremer diante dessa ameaça é o princípio da sabedoria. Quem não compreende isso cai na maior armadilha de Satanás: fazer todos duvidarem de sua existência.

Se somos meros jarros de barro cheios de água suja, não adianta colocar água limpa sem antes esvaziar nossas impurezas: eis a prioridade do asceta que se converterá em místico, praticando ou não o gozo afetivo de Deus. Devemos amar Nosso Senhor, Nossa Senhora (nos assemelhamos ao que amamos), aceitar os dogmas sem contestar e frequentar os sacramentos. Para alcançar a vida eterna o caminho mais seguro e inclusivo é o abandono da própria vontade! Ratifico o que escreveu Tomás de Kempis no "Imitação de Cristo": "Muitos, porém, estudam mais para saber, que para bem-viver; por isso erram a miúdo e pouco ou nenhum fruto colhem. (...) No dia do juízo não se perguntará o que lemos, mas o que fizemos.” Com isso não quero dizer que o tomismo está errado, quero dizer que é dispensável. Ninguém garante a vida eterna porque estudou o trivium e o quadrivium ou sabe o que é "ente" e "essência", "ato" e "potência" e conhece "as cinco vias da existência de Deus".

Santo Tomás não finalizou sua Suma Teológica, no fim da vida ele sofria de êxtases e visões místicas quando confessou a um discípulo: “tudo o que escrevi até hoje parece-me, unicamente, palha, em comparação com o que vi e me foi revelado.” O intelectual sabe que o mel é doce, mas só o místico pode saborear sua doçura e suavidade.

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